domingo, 24 de maio de 2015

Sr. G - Capítulo 24 - 3ª Parte


Patrícia Alencar Rochetty...


Sabia que isso aconteceria! Meus braços enlaçam minhas pernas, que se dobram ao encontro do meu peito!
Sinto-me como se estivesse fazendo uma regressão, mas, querendo evitá-la a todo custo a fim de me proteger de algo que vai tomando conta do meu ser. Contraio-me em busca de segurança e, com toda a minha força, pressiono cada vez mais minhas pernas contra meu abdômen e a dor rasga meu peito, dilacera minhas entranhas... flashes vêm à minha mente, meu braços agem de forma defensiva, tentando proteger-me. Eu estava pressentindo que algo ruim iria acontecer se me entregasse a uma emoção forte numa relação com um homem! Nunca soube o porquê, apenas sentia, sem me debruçar em muitos questionamentos nesse sentido! Mais e abundantes lágrimas escorrem pela minha face.

O fato é que me lembrar desse passado terrível, junto com a perda do Carlos, está estraçalhando comigo! Tendo conhecimento, agora, da real causa dos meus “ataques de pânico”, fico igualmente consciente de que tenho que me abrir com alguém, mesmo que isso tudo seja difícil, ruim e tão malditamente insano! Como foi que consegui manter no esquecimento uma coisa tão tenebrosa dessa? A visão de olhos esbugalhados domina a minha mente e não consigo entender esse tipo de coisa nem o quanto tudo o que passei pode ter afetado a formação do meu caráter, entretanto, o fato é que apenas quando minha relação com o Carlos representou uma ameaça para o meu falso equilíbrio emocional, foi que a lembrança de tudo veio à tona. Deus!!!!

Contorço-me... como isso dói! Tenho vontade de enfiar a mão dentro do meu peito e rasga-lo para puxar de dentro dele todas as lembranças que vão chegando, como um pesadelo. Puxa vida, se eu não tivesse sufocado as lembranças dessa experiência em meu subconsciente, poderia ter conversado ao menos com a Babby a respeito do assunto, sem chegar neste ponto de desespero! Nós poderíamos, juntas, tirar algumas conclusões e até procurarmos a ajuda de um profissional! Mas, tudo ficou dormindo não sei onde dentro de mim, só acordando quando me senti ameaçada pelo amor de alguém! Dói, dói muito...

Agora entendo, também, porque me sentia na obrigação de avisar sempre para o Carlos que eu não queria ficar com ele num relacionamento duradouro! Eu já sentia, inconscientemente, que não teria condições de lidar com o que tudo isso desencadearia e não queria machucar nunca esse homem maravilhoso, que merece alguém bem resolvido e não uma pessoa que nem sabia que tinha problemas emocionais! Tenho vontade de gritar, expulsar este passado deprimente. Mesmo sem saber, eu quis poupá-lo! Mas, ele não quis ouvir-me, sempre achando que era apenas um capricho de minha parte... Igualmente entendo porque, muito ao contrário do meu usual jeito aberto, comunicativo e alegre de ser, só consigo falar das minhas recentes inseguranças, bem como conversar a respeito de determinadas coisas, apenas com o Dom Leon, pois este não ameaça meu equilíbrio emocional, ele não é uma pessoa “real”, digamos assim, que vá abalar minhas estruturas ou apaixonar-se por mim! Além disso, nunca poderá dar-me ultimatos, porque se o fizer, basta, com um único clique do mouse, eu fazer com que ele desapareça da minha vida! Socorro! Esta palavra não sai da minha garganta, estando sendo gritada, por mim, sem que eu tivesse conhecimento, vida toda. Estou demasiadamente abalada por perceber o quanto essa tragédia afetou minha vida e, chorando muito, porque dói mais do que penso ser possível aguentar, deixo que as lembranças fluam, pois não tenho mais como controlar essa avalanche que me domina e estraçalha-me... sinto-me tão pequena, tão impotente, tão culpada por não ter evitado... acho que não vou aguentar de tanta dor...

Ouço um pequeno ruído e levo um susto enorme quando me dou conta de que a porta do quarto está aberta e o Carlos parado, olhando para mim, com uma expressão de pura agonia. Em meio às lágrimas, que não consigo conter, e aos soluços, que saem aos borbotões, apenas olho para ele, que diz, com a voz sentida:

− Minha menina, saí muito magoado e bravo daqui e, quando esfriei, resolvi voltar ao apartamento. Quando ouvi seus soluços, senti meu mundo desabar! O que está havendo, querida? Fale comigo! Ver você assim está acabando comigo! Por favor, posso aproximar-me de você e abraçá-la? Mesmo não passando de um reles boy magia, posso dar-lhe conforto.

Suas palavras causam mais dor pelo que o fiz sofrer e choro mais alto. Ele não espera minha resposta e, carinhosamente, abraça-me e embala-me como o mais precioso de seus tesouros. Seu carinho e atenção comovem-me e, pateticamente, choro ainda mais, porque não mereço tudo isso...

− Patrícia, meu bem, qual foi o trauma que você viveu que a fez ter tanto medo de amar alguém?

Olho para ele, assustada! Vejo-o encharcado, com o cabelo todo escorrido e com a roupa colada ao seu corpo. Como é que ele sabe a esse respeito? Como vou continuar a conversa que estava tendo com o Dom Leon? Estou tão nervosa e descontrolada que estou confundindo as coisas?

− Você pode falar comigo a respeito de tudo, minha menina linda! Por favor, uma hora você terá que confiar em alguém para colocar tudo isso para fora. Por favor, por tudo o que vivemos, dê-me a honra de ser essa pessoa.

O quanto pode uma pessoa chorar e sofrer? Suas palavras e sua atitude, aliado ao terror que estou sentindo ao me lembrar de tudo, fazem com que eu não consiga respirar. Tento puxar o ar, diversas vezes, mas, é como se este não pudesse chegar aos meus pulmões. O Carlos segura-me pelos braços, aperta forte, faz com que eu olhe para ele e diz:

− Patrícia, respire fundo, vamos! Estou aqui com você e você vai conseguir respirar. Vamos, puxe a respiração... agora, solte o ar! Mais uma vez, respire... solte o ar! Respire... solte o ar...

Ele repete isso comigo não sei quantas vezes, até que minha respiração volta a normalizar, mesmo que arquejante pelo choro. Olho para ele, que me aninha em seu colo e fica fazendo carinho nos meus cabelos. Ele é tão surpreendente! Sempre exibindo facetas diferentes e adequadas ao momento. Eu sou uma monstra por machucá-lo! Ele merece alguém que esteja à altura de sua capacidade de se entregar, não uma pessoa que tem horror a envolvimentos, com um trauma terrível a superar...

Ficamos assim, por não sei quanto tempo, até que começo a falar, numa voz monótona e sem vida:

− Meus pais são, na verdade, meus avós! Meus verdadeiros pais estão mortos... mortos por amor! – falo a palavra amor com desprezo e horror.

Sinto-o estremecer com o que falo.

− Até os cinco anos de idade, eu e meu irmão vimos minha mãe apanhar de meu pai das maneiras mais variadas e cruéis! Até hoje, é difícil de entender o quanto meu pai tinha criatividade em seus requintes de crueldade! Morávamos no sítio e, obviamente, não havia ninguém para impedir isso... Hoje, nem sei quais os motivos que ele alegava para bater nela até a exaustão, mas, tenho a impressão de que ele inventava-os como pretexto para fazer o que é característico ao monstro que era! E o interessante é que ele sabia como fazer para que ninguém de fora percebesse!

Respiro fundo, tentado diminuir meu choro, mas, vendo que é em vão, pois as comportas foram abertas, continuo: 

− Algumas vezes, eu e meu irmão tentávamos impedir, mas, ele fazia-nos desistir disso quando dizia que cada tentativa nossa representava os minutos a mais que ela apanharia. E ele obrigava-nos ver o que ele fazia, dizendo que tínhamos que aprender que quem ama tem que cuidar. E ele estava batendo nela porque estava cuidando para que ela fosse correta, direita e séria. Uma esposa e mãe prestimosa! Depois que quase a arrebentava de tanto bater, ele a abraçava e dizia que a amava muito, levava-a para o quarto e só podíamos ouvir mais gritos. Na época, imaginávamos que ele estava batendo ainda mais nela. Hoje sei que ele, muito provavelmente, violentava-a...

Nesta hora, não consigo continuar, e choro muito, ao imaginar o quanto minha pobre mãe deve ter sofrido nas mãos daquele canalha! É tão difícil lembrar-me de tudo isso, mas, sei que tenho que por tudo para fora para ver se consigo, ao menos, expurgar um pouco de minha dor. Além do que, o Carlos merece minha total honestidade. Tenho que lhe mostrar que eu sou “O” problema, nunca ele!

Esta dor, que ficou presa em mim por 23 anos, dilacerou cada momento em que tentei ser feliz. A Patrícia que mostrei para o mundo sempre escondeu o que ela não queria enxergar e, agora, não há como continuar a fazer isso e, na verdade, nem acho que é saudável. Sei que preciso colocar tudo isto para fora, que representa um objeto cortante que vem, há anos, fazendo lacerações em minha alma, as quais meu esquecimento passou a falsa impressão de que estavam cicatrizadas. Agora, a partir do momento que permiti a alguém chegar tão próximo de mim, no mínimo, tenho que ter a integridade de lhe mostrar que eu sou uma pessoa completamente inadequada para ele. Assim, com o intuito de não o deixar partir achando que não é digno do amor de alguém, tenho que lhe revelar que a indigna sou eu, que tenho verdadeiro pavor de me permitir ter esse sentimento por um homem.

− Quando ele estava de bem com a vida, parecia ser um cara decente, trabalhador e um bom pai, pois até brincava conosco. Lembro-me de uma vez perguntar para a minha mãe, na simplicidade dos meus cinco anos, por que ela deixava que ele fizesse isso com ela e não fugia. Lembro-me nitidamente de sua expressão amorosa ao responder “porque eu amo muito seu pai. E, quando a gente ama, minha filha, é assim, tem que suportar tudo, porque não estar com a pessoa amada é ainda mais difícil”. Claro que eu não entendi muito na época, mas, você tem noção do que é passar esse tipo de conceito a respeito de amor para uma criança? Você tem, Carlos? Diga-me!

Ele passa, carinhosamente, a mãos por minhas faces molhadas, olha-me carinhosamente e diz:

− Não, minha menina, mas, faz com que eu passe a entender melhor você e a admirar a mulher maravilhosa que se tornou após viver tudo isso!

Seu carinho desarma-me. Sua expressão cativa-me, mas, as lembranças ainda estão fortes. Então, continuo, pois ele percebe que há mais.

− Sei que você deve estar perguntando-se como ninguém percebia. Bem, além de morarmos em um sítio, como já disse, nós quase nunca saíamos de lá, pois era ele quem ia à cidade comprar tudo o que fosse necessário. Nas raras ocasiões em que saíamos, éramos alertados por ele que, se falássemos alguma coisa para alguém, minha mãe apanharia ainda mais. Ele dizia sempre que nós éramos muito crianças para entendermos o que era amor e o que era necessário para manter esse amor. Deus, não sei qual deles era mais insano! Ele por fazer isso ou ela por suportar. Está certo que éramos pobres e que ela iria sofrer muito caso resolvesse abandoná-lo, mas, ela tinha pais maravilhosos que poderiam ajudá-la! Mas, não sei se parece cruel dizer isso, só que parecia que ela gostava daquilo! Será que ela era uma dessas adeptas ao tão na moda “clube do chicotinho”? Como é que uma pessoa pode gostar de apanhar daquele jeito e afirmar que ama quem lhe bate?

Sinto-o mexer-se ao dizer:

− Patrícia, o que seu pai fazia com sua mãe era violência doméstica e não tinha nada a ver com relações BDSM, minha menina! Mas, compreendo sua confusão. Falaremos disso depois. Continue o que você está contando, mas, tente acalmar-se um pouco. Tenho medo de que chorar tanto assim possa fazer-lhe mal.

Novamente tomo fôlego e continuo:

− Tudo piorou quando meu irmão, que é mais velho que eu, começou a frequentar a escola. Havia um ônibus que buscava e trazia os alunos na zona rural e o motorista sempre era o mesmo. Minha mãe tinha que acompanhar meu irmão até o local em que pegaria a condução, pois não era seguro deixar uma criança sozinha em um lugar tão ermo quanto o que morávamos, onde, entre outros perigos, havia muitas cobras. Sempre éramos aconselhados a estar em dois.

Começo, novamente, a tremer e, sem que possa evitar, meu choro aumenta. O Carlos aperta seu abraço e intensifica os carinhos, percebendo que estou prestes a contar algo muito ruim.

Dói muito! Eu não senti mais esta dor, que me tomou quando vivi tudo aquilo, até hoje. Com o esquecimento forçado e a lembrança firmemente enterrada, bloqueei a dor responsável por me fazer ver o mundo como um lugar amargo e duro.

− Desde o primeiro dia de aula do meu irmão, minha mãe começou a apanhar todos os dias quando voltávamos do ponto, ao final da tarde, ao buscar meu irmão. Acho que só não apanhava quando o levávamos porque, nesse horário, meu pai estava na roça. Lembro-me de que ele batia nela e dizia que ela tinha que aprender a não cometer adultério... Como assim, adultério?!?! O homem era tão insano que imaginava que ela cometia adultério com o motorista do ônibus, na frente de não sei quantas crianças?!?!

Choro muito, sentida com a injustiça da situação e com ódio de ser filha de um animal tão paranóico e descontrolado.

− Um dia, meu irmão passou mal na escola e não tinha condições de ficar lá. Na época, não tínhamos telefone para que a escola ligasse e pedisse aos pais que fossem buscar a criança. Então, era comum que o motorista do ônibus levasse a criança para sua casa, pois não podia largá-la sozinha no ponto. Quando o motorista já estava indo embora, meu pai, não sei porque cargas d’água, voltou mais cedo e viu-o saindo de dentro de casa, porque teve que colocar meu irmão na cama! Até hoje consigo lembrar-me da expressão no rosto dele. Carlos, você já viu a cara de um assassino que sabe que vai matar?

− Não, minha menina! Já vi muitas pessoas ruins e raivosas, mas, nunca uma que estava pronta para assassinar alguém...

− Que bom, Carlos! Porque você nunca mais consegue tirar aquela expressão da sua mente! Você pode empurrar a lembrança lá para o fundo, durante anos, mas, ela sempre estará lá! Eu posso vê-la como se ele estivesse à minha frente agora.

Estendo a mão, como se pudesse tocar o que imagino estar diante de mim. Meu pai pronto para matar. Meu garanhão segura minha mão, leva-a aos seus lábios e beija-a, dizendo:

− Ele não está aqui, Patrícia! Só estamos eu e você aqui e prometo-lhe que, no que depender de mim, você nunca mais será obrigada a ver ninguém com essa expressão.

Suas palavras comovem-me e incitam-me a continuar. Meus soluços intensificam-se, porque eu não quero ver aquilo novamente! Uma vez mais, começo a perder o fôlego, a respiração não chega aos meus pulmões e sinto que vou sufocar.

O Carlos ajuda-me, de novo e, desta vez, eu consigo perceber seu desespero e sofrimento ao me ver assim. Isso me faz sofrer mais ainda, porque nunca imaginei que ver alguém que eu... aprecio sofrer fosse causar tanta dor. Respiro, no compasso que ele dita, e consigo voltar à realidade. Fecho os olhos e começo a falar, como se voltasse à pequena casinha branca, com móveis brancos, que meu pai fazia questão de que minha mãe mantivesse limpos e claros, sem um único pó marcando nada.

− Tão logo o motorista saiu, meu pai pegou minha mãe pelos cabelos, com força, arrastou-a até a cozinha e começou a bater a cabeça dela contra o fogão de lenha. Ele bateu, bateu, bateu e, não satisfeito, bateu mais...

Não consigo continuar, meus soluços saem tão altos que até eu sinto pena da minha dor! Como posso ter essa cena em minha memória após tantos anos, tendo-a reprimido a vida inteira! Deus, como dói! Choro por não sei quanto tempo. Se não consegui colocar o Carlos para correr antes, com certeza, conseguirei após contar tudo, pois o circo de horrores ainda não acabou.

− Shhhh... estou aqui! Nada de mal vai acontecer. Eu vou protegê-la de todas as dores que você puder vir a sentir, meu anjo, prometo!

Sua voz rouca acalma-me, motiva-me e não sei por qual motivo suas palavras fazem com que as memórias venham vívidas à minha mente. Acho que é porque ele consegue dar-me a segurança e a confiança de que preciso para ter forças para rememorar tudo aconteceu. Só assim, eu consigo prosseguir.

− Lembro-me de que, quando vimos que havia sangue, muito sangue, eu e meu irmão agarramos um ao outro e começamos a chorar baixinho, porque sabíamos que se chorássemos alto, ele bateria mais nela – o vermelho do sangue escorrendo, em sua testa, junto com suas lágrimas, não saem da minha memória − Não consegui olhar mais, Carlos! Eu deixei-a à mercê dele! Eu não fiz absolutamente nada!

− O que você poderia ter feito, meu amor? Você era uma pobre criança, condicionada por ambos os pais a não fazer nada! E você nem tinha condições de saber se era uma surra diferente das outras. Por favor, não se culpe nunca! Você era uma menininha totalmente inocente!

Inocente, esta palavra doce soa como algo duro e condenatório, porque faz com que a pessoa sinta-se o que ela é, ou seja, uma incapaz.

− Não sei quanto tempo aquilo durou, mas, lembro-me de que ele gritou para que olhássemos para ele, que estava com um facão, que usava na roça, em punho. Ela estava caída no chão, em meio a uma poça enorme de sangue, e eu não pude ficar olhando, não pude mesmo! Ele mandou que olhássemos para ele e disse: “o pai fez isso com a mãe porque a ama muito. Ama tanto que vai fazer companhia a ela onde quer que ela esteja, pois não posso viver sem meu amor”. E passou o facão na própria garganta! O esguicho do líquido vermelho espirrou por todos os cantos da pequena cozinha e eu e meu irmão fomos testemunhas do desfecho macabro da cena mais dura de todas as nossas vidas! Ele foi, finalmente, viver seu amor na podridão do inferno, aquele monstro desgraçado filho de uma mãe!

Choro mais ainda. Não sei onde encontrei tantas lágrimas dentro de mim!

− A partir daí, não me lembrei de mais nada, só que fomos morar com meus avós, que se tornaram meus verdadeiros pais e a quem sou capaz de fazer tudo o que for preciso, possível e necessário. Meu irmão lidou com isso afundando-se nas drogas, eu, no trabalho. É por isso que sempre quis dar o melhor aos meus pais, pois eles foram minha salvação e esforçaram-se muito para nos criar, mesmo nas condições mais adversas, sem nunca reclamar. Nem mesmo falaram uma única palavra negativa contra meu irmão, apesar de tudo o que já aprontou com eles para conseguir drogas. Tudo eles suportaram! Para mim, eles são o que há de mais sagrado no mundo. Meu irmão perdeu-se e não conseguimos atingi-lo. Já lhe ofereci para se internar em clínicas de reabilitação, mas, vou ser sincera, eu posso entender o porquê dele buscar o esquecimento nas drogas. Enquanto o monstro fazia aquilo com minha mãe, ele ficava dizendo: “é culpa minha por ter ficado doente”. Era só isso que ele sabia repetir, tendo a minha mãe em seu colo, balançando o corpo, para trás e para frente, até que os gritos dos meus avós soaram do lado de fora da casa. Até hoje não sei como eles descobriram o que aconteceu, nem sei dizer se levaram minutos ou horas para chegar. A única lembrança que vem à minha mente são os olhos esbugalhados do meu pai, olhando para a gente, com a cabeça pendurada ao lado do corpo e meu irmão balançando a minha mãe, como se a ninasse, do mesmo jeito que ela fazia conosco quando estávamos assustados.

Chorando, penso no meu irmão que nunca conseguiu superar isso. Está certo que eu também tenho coisas que não consigo esquecer e que foram determinantes na formação da minha personalidade, mas, consegui enterrar tudo e não ficar relembrando 24 horas por dia. Com ele, parece não ter acontecido o mesmo... Não penso que isso seja justificativa para usar drogas, mas, entendo porque se deixou levar pelo entorpecimento que elas proporcionam-lhe. Exaurida, faço uma última pergunta ao meu garanhão, antes de cair num sono sem sonhos.

− Como posso entregar-me ao amor, se é uma coisa que machuca, traz infelicidade, torna as pessoas insanas e é capaz de levar as pessoas à morte?


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