Capítulo 10 - Adeus ou Até
Breve?
- Preciso atender - Eva disse ofegante.
Estava aterrorizada pela voz chorosa e atormentada de
Laura.
Sem fazer qualquer pergunta ou comentário, Theo a ajudou a
levantar. Uma interrogação preocupada preenchia os olhos azuis. A atitude
compreensiva e solidária aqueceu seu coração.
Aos tropeços, ela correu para o telefone. Àquela altura, a
secretária já desligara a chamada. Recordou que usava somente o sutiã e a saia.
Retornou ao sofá, colocou apressadamente a camisa amarrotada caminhando a
passos rápidos em direção ao telefone.
Com uma mão discava o número de Laura e com a outra tentava fechar os botões, quando o aparelho em sua mão voltou a soar. Atendeu no primeiro toque.
Com uma mão discava o número de Laura e com a outra tentava fechar os botões, quando o aparelho em sua mão voltou a soar. Atendeu no primeiro toque.
Tentava acalmar Laura e descobrir o que se passava ao mesmo tempo
em que lutava com os complicados botões de pérolas da blusa. Mais uma vez a
presença silenciosa de Theo se fez notar. Com um olhar que era um misto
de compreensão com um traço indisfarçável de divertimento, ele a ajudou com os
botões e se afastou em seguida.
Sentindo ainda em seu corpo os efeitos dos breves momentos de
devastadora paixão, Eva escutou a mulher do outro lado da linha contar o motivo
de seu desespero e sentiu o peso da culpa pousar sobre seus ombros.
Como pudera se esquecer de algo tão importante? – Perguntava-se.
Com o coração confrangido, ouvia o desabafo de Laura, repleto de
frases e palavras desconexas, enquanto sentia ser a pior amiga-irmã de todos os
tempos. A bailarina era uma mulher guerreira, uma leoa. Porém, durante três
dias no ano, havia algo que conseguia fragiliza-la ao ponto do desespero.
Datas em que a ausência de Yves, falecido há alguns anos, a
atingia com uma intensidade descomunal. O aniversário dele, o dia do casamento
e a que mais a machucava, o dia em que a vida do coreógrafo foi precocemente
ceifada.
E estavam nas primeiras horas do dia no qual celebravam quatro
anos de falecimento de Yves Legrand.
Enquanto tentava acalmar a amiga, Eva não conseguia acreditar que
falhara com Laura.
Envolvida com os detalhes de sua partida para Londres, com seu
trabalho e apresentações, esquecera-se por completo da data e da dor lacerante
que esse dia provocava em sua amiga.
Sentindo as lágrimas arderem seus próprios olhos, Eva tentava
acalmar Laura o suficiente para encerrar a ligação e ir ao seu encontro. Estava
consciente que em parte o descontrole da amiga era causado pela embriaguez.
Entre uma e outra palavra entorpecida, compreendeu que a outra mulher fora a
adega e abrira o champanhe e as garrafas de vinho que o marido guardava para
ocasiões especiais.
O álcool e a solidão eram uma péssima combinação. Eva pensou com o
coração dolorido.
Como pudera esquecer? – Cobrou-se mais uma vez.
A dor de Laura a machucava também.
Era horrível ouvir as palavras de dor, solidão e desespero através
da linha telefônica e não estar perto para abraça-la e chorar junto com ela.
Como fizeram em vários momentos difíceis da vida de uma ou de outra. Lágrimas
fujonas desceram por sua face, ao ouvir Laura revelar o quanto se sentia
perdida e sozinha sem o homem para quem entregara o coração. Chorava por não
ter tido a chance de juntos gerarem outra vida.
Aos poucos, o choro dolorido e compulsivo de Laura, deu lugar a um
leve e magoado soluçar. Prometendo chegar o mais rápido que conseguisse,
Eva desligou.
Enxugava as lágrimas que teimavam em descer por sua face, quando
sentiu a aproximação de alguém às suas costas e se virou assustada, totalmente
esquecida da presença de Theo em seu apartamento.
Theo não tinha ideia do que acontecia com Laura Mondrian, mas a
reação de Eva, ao ouvir o desespero da outra mulher na mensagem da secretária
eletrônica e mesmo agora, quando ela parecia tentar acalmar a amiga, revelava
que coisa boa não poderia ser.
Notou o exato momento em Eva ouviu da amiga, algo que a abalou e
isso mexeu profundamente com ele.
Enxergar os olhos marejados e instantes depois, as lágrimas
rolarem pela face morena, provocou uma reação visceral e totalmente passional
em seu interior. Seu desejo era arrastar sua dama para o seu colo e beijar
aquela mulher até fazê-la esquecer dos motivos daquele pranto silencioso.
Em vez disso, ficou afastado e respeitou o momento de privacidade das duas
mulheres.
Quase trinta minutos depois, percebeu que Eva conseguia algum
êxito em acalmar a amiga. Não ficou surpreso ao ouvir a musicista prometer ir
ao encontro da bailarina o mais rápido possível. Se a situação fosse com
alguém de sua família ou algum de seus amigos, já estaria no carro à caminho,
antes mesmo de desligar o telefone.
Decidido a ajudar no que fosse possível, se aproximou.
- Preciso ir, desculpa – Eva disse ao se deparar com Theo à sua
frente.
Girou na direção do corredor com o objetivo de ir até seu quarto e
pegar o necessário para passar a noite com Laura. As lágrimas ainda se
derramavam de seus olhos.
Mal dera dois passos, quando a mão de Theo a segurou pelo
antebraço.
- Eva, espera! – pediu – Ela está bem? Precisa de um médico?
Socorro?– perguntou.
A sincera preocupação de Theo aqueceu seu coração.
Ela balançou a cabeça de um lado pra o outro.
- Ela não precisa de um médico, precisa de mim – disse sentindo o
coração apertado.
Ele se aproximou e em um gesto carinhoso, enxugou suas lágrimas.
- Precisa se acalmar primeiro – ponderou – Não sei o que está
acontecendo, mas se chegar desse jeito, vai deixa-la ainda mais agitada.
O gesto de carinho a desarmou.
- Eu falhei com ela – desabafou.
As lágrimas voltaram a cair ao recordar as palavras sofridas de
Laura.
- Me conta o que está acontecendo Eva – ele pediu.
Eva respirou fundo.
Antes que suas mãos alcançassem sua face, as dele, mais uma vez,
enxugava suas lágrimas.
- Normalmente não sou assim Theo – esclareceu constrangida pelas
lágrimas.
- Tenho certeza disso – ele respondeu.
O tom de voz repleto de compreensão
- Amanhã, ou melhor, hoje – se corrigiu - faz quatro anos
que o marido dela morreu.
Cristo! Já fazia tanto tempo assim? Ele se perguntou.
Ele não somente conhecera Yves Legrand, como fora ao sepultamento
do coreógrafo.
- Sinto muito Eva! – disse sincero.
Theo recordava o desespero de Laura no cemitério. Testemunhou
outra dor como aquela, quando seu cunhado morreu. A tristeza e o desespero de
Sarah foram tamanhos que ele chegou a temer perder a irmã.
- Não acredito que esqueci completamente dessa data. Eu deveria
estar com ela! – ralhou para si mesma – Que tipo de amiga eu sou? -
perguntou olhando para ele.
- Vem aqui Eva – Theo pediu com uma voz repleta de carinho.
Puxou-a para junto dele e a abraçou.
- Não é culpa sua. Não é culpa de ninguém – falou em uma voz
baixa.
Eva sentiu as mãos grandes acariciarem suas costas com movimentos
reconfortantes e deixou a cabeça repousar sobre o peito masculino.
- Preciso mesmo ir – Eva insistiu. Porém não se moveu.
- Eu sei – Theo respondeu sem deixar de acariciá-la.
Eram toques de carinho e conforto.
Naquele momento Eva precisava de apoio, não de tesão. Ele
ponderou para si mesmo.
- Ele morreu nos braços dela. O cavalo no qual estava se assustou
com alguma coisa, empinou e o derrubou. Na queda ele bateu a cabeça em uma
pedra quase imperceptível. Estava quase toda enterrada sob o solo – ela fez uma
pausa – Ele morreu enquanto ela gritava por socorro. Reviver esse dia é
horrível para Laura.
Theo permaneceu em silêncio por alguns minutos.
O que ele poderia dizer? Como encontrar sentido ou consolo em
situações tão sem sentido como a que causou a morte precoce de um homem
saudável, com uma carreira de sucesso e recém-casado com a mulher da sua vida?
- Laura participou de algum grupo de apoio ao luto? Ou fez terapia
de luto? – ele perguntou após alguns minutos em silêncio.
Eva permanecia aninhada em seus braços.
- Não – ela respondeu – Tentei leva-la em um terapeuta, mas
ela não aceitou e me proibiu de tocar no assunto novamente.
Ela lutava contra o desejo de permanecer dentro daquele abraço
para sempre.
- Esse período é muito sofrido. Toda ajuda é bem-vinda. Existem
grupos sérios, aonde os enlutados partilham suas dores e se ajudam.
- Fala como alguém que já viveu uma forte experiência de perda -
Eva comentou.
Sentiu o coração apertado ao imaginar como ele poderia saber
tanto.
- Algumas ao longo da vida, como todo mundo – ele revelou – mas a
experiência com grupos de apoio ao luto veio há pouco tempo, quando meu cunhado
morreu em um acidente de avião.
- Sinto muito Theo! – Eva o interrompeu.
- Eu também – a voz dele tinha um timbre resignado – Minha
irmã ficou desesperada. Cheguei a temer que ela fosse morrer de tristeza. Após
o enterro ela se trancou no quarto, chorava dia e noite. Não comia. Bebia água
e chás quando a gente forçava. Não queria falar e nem ver ninguém. Nem mesmo os
filhos. Ela deixou o quarto quase vinte dias depois. Meu sobrinho ficou muito
doente. E quando ela soube que o filho corria o risco de ser internado,
levantou e foi cuidar dele. Procuramos ajuda. Minha família ficou apavorada. A
reação foi lenta e gradativa. Faz somente cinco meses que ela voltou para casa
em que viveu com o marido. E apesar de estar resignada, pois as crianças amam o
lugar, tenho a nítida impressão que estar lá ainda é doloroso para ela. É
frustrante ver alguém que você ama sofrer e não poder fazer nada – confessou.
Eva levantou a cabeça de seu peito e o encarou.
Os olhos castanhos mais uma vez o encantaram.
Será que algum dia, conseguiria olhar para aqueles olhos sem se
perder neles? – perguntou-se.
- Obrigada por partilhar sua história comigo – Eva agradeceu –
Significou muito para mim.
A cada momento que passava com ele, mais encantada ficava. Theo
era um risco que ela não sabia se estava preparada para correr.
Mais uma vez ele ficou em silêncio.
Theo não entendia o que o fez revelar algo tão íntimo, tampouco se
arrependia. Eva fazia florescer essa necessidade de partilhar suas experiências
e fazê-la sorrir.
Com uma mão acariciou a face morena com expressivos olhos cor de
whisky que eram protegidos por longos cílios negros, um nariz delicado e um par
de lábios que faziam qualquer homem esquecer suas boas intenções.
- Preciso mesmo ir – Eva quebrou o silêncio cúmplice.
Enxergava nos olhos azuis a clara promessa de um beijo longo e
sedutor. Porém, por mais tentadora que fosse aquela promessa, tinha um
compromisso e uma responsabilidade com Laura. Não falharia mais uma vez.
- Podemos ir? Ou precisa pegar algo antes de sairmos? – Theo
perguntou liberando a mulher do abrigo de seus braços.
- Não precisa me levar, posso chamar um táxi.
- Vou levar você Eva, isso não está em discussão.
- Theo, a Laura mora longe daqui. Não é justo fazer você me levar
tão longe - argumentou.
Ele sabia o endereço de Laura, ficava a trinta minutos da sua
casa.
- Não vou deixar você pegar um táxi há essa hora. Eu levo você.
Eva tentou argumentar mais uma vez.
- Mas...
Theo a interrompeu.
- Eu vou levar você.
O tom de voz, apesar de controlado, possuía uma autoridade nata.
Eva o encarou entre divertida e desafiada. A sobrancelha direita
erguida em uma pergunta muda.
- Você escolhe, ou irá no carro comigo, ou seguirei o táxi até o
seu destino – ele decretou sério.
Agora ela o encarava com as duas sobrancelhas erguidas.
Ele não o faria. Faria? – Eva se perguntou.
Em resposta a pergunta que ela não pronunciou em voz alta, Theo
também ergueu as sobrancelhas loiras, em um descarado desafio.
Apesar do estresse experimentado nos últimos minutos, ela sorriu.
- Você venceu Theodoro Emiliano Santini.
E antes que cedesse ao desejo de agarrar e beijar aquele homem
seguiu para o seu quarto.
Quinze minutos mais tarde, através de uma das janelas da sala de
jantar, Theo observava a vista da cidade, que naquela hora da madrugada, tinha
um ritmo mais lento. Porém, merecedora do título de cidade que nunca dorme, São
Paulo realmente não parava. Contemplava a movimentação escassa de carros e as
luzes acesas nos prédios comerciais do bairro, enquanto refletia sobre os
acontecimentos das últimas horas e o quanto Eva Martins o enfeitiçara com seus
olhos cor de whisky, sua voz melodiosa e atitude despojada.
O apartamento antigo, de cômodos amplos e grandes janelas fora uma
agradável surpresa. A decoração leve e colorida. Composta de móveis
confortáveis e customizados revelava que a moradora possuía mais dons especiais
além da música. Peças modernas se misturavam a peças antigas que ganharam
roupagem nova. Ele entendia o suficiente de trabalhos manuais para identificar
que os diferentes móveis foram trabalhados pelo mesmo artesão. E havia um
cuidado em todos os objetos que o fazia ter a certeza que Eva trabalhara sem
pressa em cada peça. Objetos de decoração vintage se misturavam a peças
clássicas. O resultado era um ambiente colorido e acolhedor.
Desconfiava existir em algum lugar no imóvel, um estúdio de
estudos e criação. Eva possuía um olhar atento e curioso. Como se interpretasse
de um modo particular, o mundo a sua volta. Poderia apostar que ela também era
compositora.
Os olhos vagaram pela sala e pousaram sobre o sofá. Imediatamente
sentiu o corpo reagir à lembrança dos momentos de paixão experimentados. Ela
estava tão macia, quente, cheirosa e receptiva em seus braços...
Theo respirou fundo e caminhou pela sala para acalmar sua
testosterona.
Não era somente a promessa de sexo incrível, que sabia que
experimentariam juntos, mas também aquela insistente sensação de conhecer.
Sentia respeito, carinho e algo que ainda não conseguia definir por essa
mulher. Sentimentos fortes demais para alguém que conhecia de fato
somente há algumas horas.
Sons de passos ecoaram pelo silencioso apartamento. Theo buscou
com o olhar o corredor pelo qual Eva seguira há quase vinte minutos e foi como
ser atingido por um cruzado de direita. Diferente das saias longas e amplas com
as quais estava acostumado a vê-la, Eva usava um calça leggin preta, camisa
branca na altura do quadril e uma jaqueta preta. Nos pés usava sapatilhas
vermelhas. Os cabelos estavam em um rabo de cavalo. O rosto lavado de qualquer
maquiagem. Se com as roupas largas ela já acendia seu sangue, o que dizer
daquela calça delineando e revelando as deliciosas curvas do corpo feminino.
- Algo errado Theo? – Eva perguntou – Eu demorei muito? –
questionou preocupada.
Não resistiu a tomar um banho rápido. Gastara menos de dez minutos
no chuveiro e outro dez, jogando em uma bolsa de viagem, tudo o que julgou
necessário para passar o que restava do final de semana com Laura.
Theo abria a boca para responder quando ela se deu conta que o
violoncelo permanecia sobre a poltrona.
- Droga! - praguejou – Preciso de mais um minuto.
Eva largou a bolsa no chão da sala, pegou o cello e seguiu de
volta para o corredor.
Theo não conseguiu segurar a curiosidade e seguiu atrás dela.
Não conseguiu conter o sorriso ao entrar pela porta que Eva
deixara aberta, enquanto a observava retirar o instrumento da capa protetora e
colocá-lo sobre um suporte personalizado. A capa também foi pendurada em um
suporte, no qual outras duas capas repousavam.
Um estúdio.
Ele sabia que ela tinha um estúdio em algum lugar daquele
apartamento. O cômodo de paredes brancas tinha poucos móveis. Um piano de
tamanho médio, mas de excelente qualidade acústica, um escrivaninha customizada
com várias partituras espalhadas, uma confortável cadeira e os três
violoncelos.
- Eu tinha certeza que você compunha – comentou surpreso e
divertido.
Eva se virou claramente surpreendida, não esperava que ele a
tivesse seguido.
- Desculpe, mas minha curiosidade sobre isso – apontou a extensão
modesta da sala – foi maior – confessou.
- O isolamento acústico custou uma pequena fortuna. Mas pelo menos
não sou ameaçada de morte pelos meus vizinhos – comentou divertida.
- Aquele é o cello do espetáculo do municipal não é?
Theo perguntou ao identificar o mais imponente dos três
instrumentos.
A pergunta surpreendeu a musicista.
- Você estava no municipal?
- Estava – revelou – Você é fantástica. Assisti sua apresentação
com um sorriso no rosto.
Foi a vez dela sorrir.
- Obrigada.
Theo contemplou os instrumentos mais uma vez.
- Você tem seguro desses cellos?
A pergunta a surpreendeu. Não era comum alguém que não estivesse
familiarizado com os instrumentos identificar a diferença entre os medianos e
os profissionais somente ao observar.
- Bom – ela começou – tenho seguro do apartamento. Eles estão
dentro do apartamento, então tecnicamente... – ele a interrompeu.
- Eva...
O riso dela o interrompeu...
- Fique calmo empreiteiro das flores. Estão todos devidamente
segurados.
- Me diz que nunca pegou o metrô com aquele cello.
Theo estava realmente preocupado. Ele poderia não ser versado em
instrumentos de câmara. Porém, tinha o conhecimento necessário para identificar
uma obra de arte quando a via. E aquele instrumento era uma.
A preocupação dele era genuína, Eva percebeu.
- Apesar de não acreditar que os jovens infratores que rondam as
estações do metrô reconheçam a diferença entre um violão e um cello. Não, nunca
peguei o metrô com esse instrumento. Eu não seria tão irresponsável – Eva disse
em uma voz conciliadora.
- Você me confunde Eva.
Ela sorriu novamente.
- Confundo a mim mesma, Theo. Então é melhor se acostumar com a
minha confusão.
O significado implícito de suas palavras pairou entre eles.
- Theo eu não quis dizer – ele a interrompeu.
- Eu sei – respondeu com um brilho maroto nos olhos – Digamos que
confusão me parece bom nesse momento.
Apesar de todo seu corpo gritar por ela, ele não se aproximou.
- Vamos? – Perguntou rompendo o breve e incômodo silêncio.
- Vamos.
Eva passou por ele. Enquanto pegava sua bolsa, Theo se encarregou
da sacola de viagem.
Deixaram o apartamento em silêncio. Cientes do elefante invisível
que as palavras inadvertidas de Eva, colocou entre eles.
Theo conduzia a pick-up C-10 através do tranquilo trânsito da
madrugada. Ao seu lado, Eva observava a paisagem urbana através da janela do
passageiro em um compenetrado silêncio.
Ele sabia, com uma certeza incômoda, quais eram os pensamentos que
ocupavam a mente de sua dama. E não era a preocupação com a amiga Laura.
Ela estava assustada, ele sentia.
As coisas entre eles estavam acontecendo em uma velocidade
vertiginosa. Desde o momento no estúdio, quando sem intenção, ela deixara
escapar a promessa de uma relação, sentiu-a recuar. Não a culpava. Ele também
estava confuso.
A única certeza que tinha naquele momento era a que desejava Eva
Martins em sua vida. Se tivesse que dar alguns passos para trás, o faria.
Com a cabeça voltada para janela Eva observava a paisagem urbana
de São Paulo, sob a ótica peculiar da madrugada. A cidade que nunca dorme,
pensou.
Respirou fundo e atraiu a atenção do homem ao seu lado. Após
um breve, porém, acolhedor olhar, ele se concentrou novamente na direção.
Eva estava agradecida por Theo respeitar o seu silêncio. Estava
confusa, para dizer o mínimo.
Até aquela noite, acreditava que nunca em sua vida, faria sexo com
um homem no primeiro encontro. Mas fora exatamente isso que “quase”
acontecera.
Se não houvesse recebido a ligação de Laura ou se a secretária
eletrônica estivesse desligada, teria feito sexo com um homem que conhecera há
apenas algumas horas, sobre o sofá da sala.
E apesar de ir contra todas as suas convicções, não se arrependia.
E isso a assustava.
Theo a atraía. Fascinava e envolvia em um sentido novo e perigoso.
No início, quando ele era apenas o desconhecido do metrô, creditou
sua atração ao fato de estar a muito, muito tempo sem namorar ou mesmo sexo.
Mas não era o seu celibato voluntário a causa dessa atração
avassaladora. Caso fosse, também teria se sentido atraída por Heitor. Porém, o
descarado interesse do violonista não a deixou interessada e sim contrariada.
Foi o homem ao seu lado, que conduzia o utilitário concentrado na estrada que
reascendeu o desejo em seu corpo.
Até aquela noite, não se dera conta de como se fechara em si mesma
nos últimos anos. Tinha amigos que amava. A música era sua paixão. Sentia-se
feliz e realizada. Mas ao entrar em sua vida, Theo desnudou uma necessidade que
até então ela vinha escondendo de si mesma.
As poucas horas que passaram juntos, mexeram profundamente com
seus sentidos, libido e sentimentos. Sentia uma tão profunda, quanto absurda,
conexão com ele. Estar com Theo trazia essa intensa familiaridade que a fazia
sentir como se estivessem juntos há muito tempo, quando na verdade nem sequer
estavam juntos.
Conversar, desabafar e se deixar consolar por ele, parecera tão
certo e tão fácil.
E ainda existiam aqueles olhos azuis que pareciam ler sua alma.
Theo era o homem certo, no momento mais errado de sua vida.
Não poderia se apaixonar por ele. E isso acabaria acontecendo se
insistissem em algum tipo de relacionamento. Estava de partida para Londres, com
a perspectiva de se estabelecer definitivamente na Europa. Arriscar-se a perder
o coração para um homem que estaria a um oceano de distância, seria um erro. Um
homem que em algum momento a pediria para escolher entre ele e sua carreira.
Não poderia, nem deveria insistir no erro e acreditar que um
relacionamento poderia sobreviver à distância. Sua experiência provara o
contrário.
E se das outras vezes saíra machucada, dessa vez, o coração
gritava que seria bem pior. Porque nenhum dos dois homens que no passado
acreditou amar, despertaram os sentimentos e reações que Theo despertava.
Por que em nome de Deus, o destino resolvera brincar de maneira
tão cruel com ela?! – Se perguntou em silêncio.
Distraída em suas divagações, não percebeu que chegavam ao condomínio
fechado onde Laura morava.
- Está entregue senhorita Martins – Theo disse divertido ao
perceber que ela estava tão compenetrada em seus próprios pensamentos que não
se dera conta que entraram no condomínio.
Ao chegarem, os seguranças olharam contrariados para pick-up. Mas
ao identifica-la, liberaram a entrada sem fazer qualquer pergunta ou
verificação. Isso revelou o quanto ela vinha ao lugar.
Confusa, Eva olhou para ele em seguida para a casa de Laura, sem
entender como passaram pela segurança, sem todo o procedimento rigoroso do
condomínio.
- O segurança a reconheceu e até cumprimentou – Theo esclareceu –
Se bem que a pick-up os confundiu. Acho que nunca viram uma C-10 entrando pela
entrada social – completou divertido.
Eva sorriu da observação.
- Não uma tão bem conservada e equipada quanto a sua – Ela
ponderou.
- Precisa que entre com você? Para se certificar que está tudo
bem, que ela não precisa ir a um hospital ou coisa assim?
- Não precisa. Os caseiros estão aqui nesse final de semana. Diana
é o anjo da guarda da Laura, diferente de mim, ela não esqueceu que dia é hoje
e permaneceu por aqui, apesar da folga. Ela esta cuidando dela enquanto espera
a minha chegada.
A culpa ainda pesava sobre suas costas.
- Meu celular ficará ligado. Se precisar de alguma coisa me liga.
Theo soltou o cinto de segurança, porém antes que pudesse abrir a
porta para sair e dar a volta para ajuda-la a descer, a mão dela pousou sobre
seu braço direito.
- Espera - Eva pediu.
Os olhos azuis olharam surpresos para ela.
- Temos que conversar - disse e respirou fundo.
- Temos sim. Mas nossa conversa pode esperar essa tempestade
passar - Theo argumentou.
Ela respirou fundo mais uma vez.
- Não quero esperar. Quero falar agora, enquanto tenho coragem.
A sinceridade quase o fez sorrir.
Theo se inclinou na direção dela e soltou o cinto de segurança.
- Estará mais confortável sem ele – esclareceu seu gesto.
Ela não pronunciou uma palavra.
A proximidade mexeu com ambos.
- Então... – ele perguntou depois de alguns segundos de silêncio.
Eva não sabia como iniciar aquela conversa.
- Theo – fez uma pausa – Sobre essa noite – nova pausa – Eu...
Cadê as palavras quando mais preciso delas? Ralhou consigo mesma.
- Você? – Ele perguntou olhando para olhos castanhos.
- Não quero – outra pausa - Eu não vou para cama com um homem no
primeiro encontro.
- Não estávamos na cama, estávamos no sofá Eva.
Ele brincou e arrancou um sorriso constrangido dela.
- Na verdade não vou para cama com ninguém a muito tempo – ela
revelou.
- Eu estava lá com você. Sei exatamente o que estava sentindo,
porque eu senti o mesmo.
Por Deus! Aquilo seria ainda mais difícil do que imaginara. Eva
pensou.
Ela tentou mais uma vez.
- Isso – ela fez um gesto com a mão que abrangia ambos – Essa...
- as palavras não saiam.
- Atração? – Theo a socorreu.
- Essa atração é muito... – novamente as palavras fugiram.
O que acontecia com ela! Eva se perguntava.
- Intensa? – mais uma vez ele a ajudou.
- Isso – Eva concordou – O que acontece comigo? – protestou em voz
alta.
Theo tinha um grave problema.
Estava prestes a receber um pé na bunda e a única coisa que
conseguia pensar era no quanto ela parecia graciosa quando estava constrangida.
Não resistiu e acariciou o rosto pelo qual estava fascinado.
Tocá-la estava se tornando um vício.
- Sou grandinho e tenho as costas largas Eva. Eu aguento.
A voz tranquila e segura a fez fechar os olhos por alguns
segundos.
Quando tornou a abri-los, Theo a encarava com um brilho intenso
que escurecia os impactantes olhos azuis.
- Não posso me apaixonar por você Theo - Eva falou de uma vez.
Ele continuou olhando para ela em silêncio.
- Seria um desastre – concluiu.
- Por que seria tão ruim assim? – ele quis saber – Por que sou
quase um jardineiro?
Theo não entendeu como a pergunta escapou de sua boca. Mas não
voltou atrás. Precisava saber até onde essa mulher era diferente ou não, das
que conhecera.
- Qual é o seu problema com isso? – Eva perguntou irritada.
- Muitas mulheres querem um cara rico Eva.
- Eu não sou muitas mulheres. Vamos deixar isso claro - exigiu – E
se uma mulher já machucou você por esse motivo, tem de dar graças a Deus por
ter se livrado dela – resmungou.
- Faço isso todos os dias – revelou.
O porquê revelara algo tão íntimo e doloroso? Perguntou-se
atordoado.
- Sinto muito Theo.
Eva queria muito agarrar essa mulher pelos cabelos e ensinar uma
coisinha ou duas sobre ética, respeito e dignidade.
- Porque seria tão ruim se apaixonar por mim? – Ele perguntou mais
uma vez.
- Daqui a três meses estou indo embora. E se tudo der certo,
ficarei por lá definitivamente. Se nós nos envolvermos, um ou ambos sairão
machucados.
Theo tinha um milhão de perguntas sobre aquele assunto. Mas não
era hora de fazê-las.
- Somos ambos adultos, solteiros e bem resolvidos. Acredito que
somos capazes de explorar essa atração que sentimos, sem riscos afetivos para
nenhum dos dois.
A quem ele queria enganar? Theo se perguntou em silêncio. Já
estava meio que apaixonado por ela, reconheceu.
Eva não conseguiu disfarçar a surpresa. O galante Theo Santini era
pragmático.
- Ninguém controla o coração Theo – enfatizou – E se essa noite
prova alguma coisa é que não temos controle algum sobre essa atração.
- O que há de tão ruim nessa atração se transformar em um
relacionamento? – ele questionou – Londres não é o fim do mundo Eva. Se daqui a
três meses a gente desejar continuar apostando nisso, não será exatamente um
desastre. Existem aviões, internet, telefone, webcam... – ela o interrompeu.
- Não vai funcionar. Não funcionou antes e não irá funcionar dessa
vez.
Agora era ela quem revelava algo íntimo.
- Quem machucou você? – Theo perguntou contrariado.
-Não importa quem ou quando – ela fez uma pausa – Teremos no
máximo três meses juntos e ficaremos separados por no mínimo um ano. Ficaremos
longe um do outro quatro vezes mais tempo do que pode durar esse
relacionamento. Como podemos fazer dar certo?
- O quanto esse cara machucou você?
Ele não a deixou fugir do assunto.
- Não foi um cara. Foram dois. Em épocas e situações distintas.
Você quer saber o quanto doeu? O suficiente para que não queira passar por tudo
isso uma terceira vez.
Theo sabia reconhecer a derrota. Mesmo quando ela tinha um gosto
amargo como aquele.
Olhavam um para o outro. O silêncio revelava tudo o que desejavam
dizer um ao outro.
- Nunca machucaria você – ele disse por fim.
- Às vezes não temos escolha – Eva respondeu sem fugir do olhar
intenso.
Mais uma vez ele se aproximou e acariciou a face morena, de pele
macia e traços exóticos. Novamente ela fechou os olhos, deliciada pelo toque
dele.
- Não era somente sexo – ele disse por fim.
- Eu sei.
Eva o viu se aproximar fascinada pela textura do lábios que sabiam
beijar como o pecado.
- Adeus Eva Martins – ele não conseguia acreditar que sua dama de
olhos cor de whisky escapava por entre seus dedos.
- Adeus Theodoro Emiliano Santini – Se despediu mirando a boca
dele. Desejava aquele último beijo com todo o seu ser.
Theo sorriu ante a menção do nome completo, para em seguida tomar
os lábios macios e quentes em um último beijo. Eva tinha o sabor da primavera
misturado com a perdição. Ela era o pecado em sua melhor forma. A tentação em
seu grau mais elevado.
Quando a boca dele desceu sobre a sua, Eva esqueceu tudo o que
exigia que se afastasse desse homem. Permitiu que os lábios experientes
saboreassem os seus com a mesma avidez com que os saboreava. Quando ele
aprofundou o beijo ela gemeu perdida no sabor e no calor que emanava do corpo
masculino. Em um gesto inconsciente, agarrou a camiseta preta e o puxou para
si. Em resposta ao pedido silencioso, as mãos de Theo agarraram seu corpo e a
arrastou para o seu colo. Sem esboçar qualquer resistência ela se deixou levar.
No instante seguinte, se viu sentada de frente para ele, com uma
perna de cada lado. Sentir o corpo grudado ao dele à fez gemer mais uma vez.
Sentia as mãos masculinas por todo o seu corpo. Theo a tentava, excitava, tudo
isso sem interromper a sucessão de beijos arrasadores.
Ele não queria parar. Não queria deixá-la ir.
Quando Eva gemeu em sua boca, todo o controle desapareceu. Quando
a sentiu agarrar sua camiseta, não teve dúvidas e a trouxe para o seu colo. O
espaço exíguo da cabine da caminhonete não os intimidava. Na verdade, parecia
perfeito.
Quanto o corpo feminino se moldou perfeitamente ao seu, foi a vez
dele gemer. Ele queria essa mulher! E que todo aquele discurso sensato fosse
para o inferno.
- Theo – Eva sussurrou em um tom rouco de advertência e se afastou
interrompendo do beijo.
Olharam surpresos e ofegantes um para o outro, perguntando-se como
foram parar naquela posição.
- Sem controle – ele ofegante – Enfim entendi o que quis
dizer.
Conseguiu arrancar um sorriso constrangido dela.
- Preciso ir – Eva disse ao se mover e voltar ao banco do
passageiro.
Sem dizer uma palavra, Theo deixou o carro, deu a volta no
utilitário e a ajudou a descer.
- Obrigada – Eva falou ao receber a sacola – Adeus Theo.
Ele não conseguiu responder. Todo seu corpo se negava a deixá-la
ir.
Eva entendeu o silêncio e seguiu para entrada da casa de Laura.
Antes que chegasse a porta, foi puxada contra o corpo que o seu conhecia e
beijada como nunca fora antes em sua vida.
- Adeus Eva Martins – Ele disse ao encerrar o beijo e seguiu para
a pick-up.
Somente depois que ela entrou na casa ele ligou o carro e deixou
condomínio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário