sábado, 5 de abril de 2014

SÉRIE SANTUÁRIO 01 - A HISTÓRIA DE NÓS DOIS - Capítulo 03


Capítulo 3

           Irmã Maria da Anunciação, em uma postura impecável e com uma aparência serena, saudava os recém-chegados, ao lado de Pedro (Caetano), João e André. 

         
Como o protocolo exigia, ela saudou o cardeal e beijou seu anel em sinal de respeito e depois saudou a madre superiora. 

          O olhar caloroso da freira trazia a sombra da culpa, Caetano notou. 

          Um discreto olhar trocado com João e com André que também estavam na sala revelou que eles também haviam notado que algo ali não ia bem. Impressão confirmada quando ao anunciar sua retirada e de seus homens, para que eles pudessem conversar com privacidade, o cardeal não somente dispensou tal formalidade, como fez questão da presença deles. 

        - Fico satisfeito que tenha se recuperado completamente. – disse se dirigindo a Irmã Maria da Anunciação, que ao tentar lhe dirigir a palavra foi silenciada com um gesto – Não há necessidade, serei breve em meu comunicado. – disse antecipando o convite para se acomodarem.

       - Como quiser Vossa Eminência. – ela respondeu com o peito apertado e o queixo levemente erguido. 

          - Como disse quando nos encontramos no hospital em Belém, a igreja já possui mártires suficientes, não necessitamos de novas adesões a nossas fileiras. Esse atentado chamou uma atenção desnecessária a já tão apedrejada imagem da igreja e uma equivocada adoração da imprensa a sua imagem, o que devo salientar é totalmente inapropriado, devemos anunciar a Jesus Cristo e não a nós mesmos. - declarou e percebendo que ela tinha a intenção de defender-se ele novamente a silenciou com um gesto. 

     - Não obstante esse episódio lamentável fui informado do seu, com poderia dizer, lamentável comportamento, que em nada condiz com o de uma religiosa da prestigiosa ordem na qual tão diligentemente foi aceita.

         Agora era oficial, seria enviada a Sibéria, ela pensou. 

        Olhou para madre superiora, que não correspondeu a seu olhar e perguntou.

    - Do que estamos falando exatamente Vossa Eminência? – a voz controlada era desmentida pelas mãos, que agarravam a saía do hábito com força. 

       Em pensamento ela tentava lembrar em vão o nome da cidade russa que era considerada a mais gelada e isolada do mundo, pois tinha suspeitas de que seria enviada para lá. 

       - Chega atrasada para as orações da manhã e para as celebrações Eucarísticas, sempre encontra desculpas para evitar o jejum, dorme durante as orações e vigílias. Desobedeceu ordens de sua superiora quando ao invés de cuidar somente da evangelização e catequese dos fiéis escolheu envolver-se em questões políticas e sociais que não nos dizem respeito. Esqueci de mencionar algo? 

         Ela respirou fundo, a cor rosada das faces indicava o quão indignada se sentia. 

     - Com todo respeito Eminência, me permita recordar-lhe, que nosso mosteiro está localizando numa região muito pobre. Nos é exigido desempenhar funções que vão além da preparação de crianças para Primeira Eucaristia. Somos referência sim, da presença do Senhor e por isso mesmo, temos que nos transformar em professoras, parteiras, enfermeiras, além de dirigirmos celebrações, pois como a Igreja tem conhecimento, a maioria dos sacerdotes se nega a serem enviados a regiões de extrema pobreza. – ela ergueu ainda mais o queixo – Sim, às vezes chego atrasada para as orações da manhã, mas isso ocorre porque certamente fui dormir já de madrugada, por ter ajudado no parto ou no velório de alguém. Sim, evito os jejuns semanais, pois tenho de caminhar sob o calor e o sol escaldante durante horas visitando as comunidades para dar catequese e auxiliar em celebrações, o que é impensável com o estomago vazio. Sim, confesso dormir durante as Vigílias, assim com confesso que já trabalhei como coveira em diversas ocasiões. Já cavou uma sepultura para uma criança, eminência? – perguntou e não deu chances para ele responder, - Pois eu sim. Já tentou  dar catequese a vinte crianças famintas? Já tentou pregar a Palavra do Senhor a pais desesperados por verem seus filhos morrerem de fome ou pelo vício das drogas? Pois eu sim, não somente com palavras, como diversas vezes fui admoestada a fazer, eu reconheço, mas também com ações, pois foi assim que aprendi com Jesus Cristo. 

        - Ousa desrespeitar um enviado de Vossa Santidade? – o homem estava vermelho de raiva. 

       - Perdão Eminência, mas não vejo como minhas ações possam desrespeitar a Igreja. Como o próprio Cristo nos ensinou, me coloco ao lado dos excluídos de nossa sociedade. Através do batismo assumimos nossa missão de profetas, e como tal, denunciei os desmandos de um homem que acredita que o dinheiro pode comprar a dignidade humana. Um homem que, para me calar, estipulou um preço pela minha morte e anunciou aos pistoleiros da região que a temporada de caça estava aberta. 

          - Como ousa citar o Salvador para mim? - O cardeal cuspiu a pergunta.

     Ousar é uma palavra que se encaixa perfeitamente para mim, estou ousadamente ferrada! – ela pensou

          Ops, perdão Senhor! – se corrigiu em pensamento. 

         - Suas atitudes são totalmente arrogantes e irresponsáveis – ele a acusou e mais uma vez calou o protesto nascente com um gesto – Acusou um homem sem prova alguma. Por sua culpa, a região está vivendo um clima de quase guerra civil. A reputação de um pai de família sendo enlameada. Para apaziguar os ânimos, fui forçado a fazer um pronunciamento antes de vir para cá: em nome da igreja pedi desculpas publicas pelo seu equivocado comportamento à sociedade, a polícia e ao homem, a quem você inconseqüentemente acusou.

        Caetano, João, André e Irmã Maria do Perpétuo Socorro, que a tudo testemunhavam em silêncio, viram quando todo o sangue fugiu do rosto da religiosa, ela cambaleou discretamente e quando os homens fizeram menção de se aproximar, foi a vez dela com um gesto, pará-los. 

       - Recebi cinco tiros Vossa Eminência, não existe equívoco algum quanto a isso. Assim como não existe equívoco em quem encomendou minha morte, pois foi ele mesmo que me comunicou do fato. – Como desejava poder bater na cara daquele homem! Pensou. E por que sua superiora nada falava? Por que não saía em sua defesa? – se perguntava. Sabia não ser um modelo de virtudes, mas também sabia que não era a pior freira do planeta, ou era? 

       - Certamente palavras que foram ditas, no calor do momento. – o cardeal insistia em banalizar o atentado – Pelo que sabemos, você pode ter sido assaltada. – o olhar a desafiava a contrariá-lo. 

           No auge de sua indignação, ela engoliu em seco e decidiu ir direto ao assunto. 

           - Para onde serei transferida dessa vez? – perguntou. 

           Por que não era como as demais religiosas? – se recriminou em silêncio.

       Por que sempre metia os pés pelas mãos e terminava sendo despachada para outro mosteiro?

          O cardeal, com olhos semicerrados, há observou alguns segundos antes de responder. 

          - Acho que ainda não me fiz entender, então serei mais claro. – anunciou. 

          Caetano sentiu o desastre eminente, antes mesmo de entender o que de fato se passava na cena que se desenrolava a sua frente. 

          - Pelos motivos aqui expostos, e diante destas testemunhas. – apontou os três homens presentes na sala – como representante de Vossa Santidade e da igreja de Jesus Cristo, a comunico de seu desligamento definitivo e irrevogável. – decretou como se lesse uma sentença diante de um réu, que acabara de ser condenado. Maria da Anunciação sentiu como se seu coração tivesse parado de bater, a respiração ficou suspensa, e dessa vez, sentiu realmente as pernas falharem, se apoiou na primeira coisa que conseguiu segurar, o encosto de uma poltrona.

           - Não posso ter ouvido direito. – disse num fio de voz.

       Maria da Anunciação dirigiu um olha quase suplicante à madre superiora que ainda evitava seu olhar. Desamparada, voltou-se ao cardeal.

          - Não pode ser verdade, esse é um processo que leva meses, senão anos. – questionou. 

         - Mais um sinal de sua total inaptidão para as graças e bênçãos que representam a vida religiosa. Somente envergonhou sua ordem e decepcionou suas superioras e irmãs em Cristo. – disse sem piedade alguma e lhe estendeu um envelope que até aquele momento ela não havia notado que ele trazia. 

         Com mãos trêmulas, ela o abriu apressadamente e ao ler o documento que ele continha, reviveu a dor lacerante que sentira ao ser alvejada pelas balas do matador de aluguel. 
         Era oficial e irrevogável, estava expulsa. 

         Tremendo, buscou mais uma vez com o olhar a superiora e mais uma vez foi ignorada. A cruel atitude a fez sentir solidão numa profundidade ainda não experimentada por ela em seus vinte e sete anos. 

      Um discreto pigarrear chamou sua atenção e ela se deparou com seis pares de olhos masculinos. Quando os outros três haviam entrado na casa ela não sabia, mas ali estavam os seis homens que revezavam os cuidados com sua segurança nos últimos trinta dias. Eles traziam a mesma determinação e a faziam saber que se ela assim o desejasse, teriam prazer em atirar a dupla de religiosos, porta afora. 

        A solidariedade vinda de pessoas que não a conheciam, para aos quais ela fora, nada mais que um trabalho, quando muito, uma dor de cabeça, pensou ao lembrar a antipatia de Pedro, deram-lhe a força que necessitava para enfrentar aquele momento com o mínimo de dignidade. 

      Respirou fundo e muito calmamente devolveu o documento ao envelope, encarou o cardeal com a cabeça erguida e esse entendeu a atitude como sinal para terminar o que viera fazer.

        - Sua última tarefa será levá-la para o local que ela desejar. Feito isso, sua equipe está dispensada – comunicou ao homem chamado Pedro e voltou-se novamente para a agora ex-religiosa – Trouxemos uma mala com roupas laicas e algum dinheiro que a auxiliará. Aguardarei no carro enquanto Irmã Maria do Perpétuo recolhe as vestes religiosas, incluindo a que está usando. 

      - Poderei me trocar no quarto, ou exigirá que me dispa na sala, para garantir testemunhas para o ato de expulsão Vossa Eminência? – perguntou sarcástica, enquanto a dor da traição dilacerava seu peito. 

          - Foram atitudes como esta, que a colocaram na situação na qual se encontra. Seja sábia e aprenda com seus erros. – o cardeal admoestou – Providencie que um de seus homens traga a mala para dentro. – disse dirigindo-se a Caetano e deixou a casa. Esse fez um sinal a João e ambos o seguiram para fora. 

       - Não quero nada que venha dele. – ela pronunciou as palavras com os olhos fixos na porta pela qual os três homens acabaram de deixar a casa.

       - Não espero que entenda a minha posição, mas fui obrigada a escolher entre proteger uma de minhas filhas ou todas as outras. 

       A voz da madre superiora ressoou pela primeira vez no ambiente. Soava segura, maternal e cansada.

           – Fiz o que tinha que fazer. – disse, permitindo-se olhar para a mais jovem.

          Maria da Anunciação notou pela primeira vez que os olhos da superiora traziam o brilho opaco da resignação e cansaço. 

          - Tanto as roupas quanto o dinheiro não pertencem a igreja – A superiora esclareceu – Desde que a noticia de seu atentado se espalhou, recebemos muitas demonstrações de respeito e carinho. Recebemos doações em espécie a fim de custear sua recuperação. Usamos uma parte desse dinheiro para comprar as roupas e a outra parte a ajudará a se manter por um tempo, se utilizada com sabedoria. 

       - Essas pessoas fizeram doações para ajudar na recuperação de uma freira. – a mais jovem retorquiu, resistindo a receber ajuda das mesmas pessoas que acabam de esfaqueá-la.

         - Esses benfeitores se mobilizaram por acreditarem na mulher jovem e idealista que, em sua ingenuidade, acreditou que tinha forças para enfrentar o coronel das terras do Pará. – a mais velha considerou – aceite, se não por mim, em consideração a nossas outras irmãs. – ela respirou fundo – Isso foi tudo que pude fazer por você. – confessou. 

         Naquele instante a ex-freira se deu conta de que a superiora estava sendo coagida, ainda não sabia se pelo cardeal ou pelo coronel paraense, ou pior pelos dois.

            A atenção dela foi desviada para João que entrava com a tal mala. 

           Ele parou diante dela, o olhar preocupado.

        - Não tem que passar por isso, uma palavra sua e botamos esses dois para correr. – disse num tom de voz baixo. 

         Ela sorriu triste, por aquela demonstração de lealdade, sem entender o que fizera para merecer.

       - Está tudo bem. – disse a ele, que contrariado seguiu com a mala para deixá-la no quarto que ela ocupara no ultimo mês. 

          A madre superiora, estendeu-lhe um envelope que retirou de um dos bolsos embutidos que eram comuns em hábitos religiosos. 

          Após uma breve hesitação Maria da Anunciação pegou o envelope.

          - Aguardarei aqui enquanto prepara as vestes que devo levar de volta ao mosteiro. 

      A mais jovem respondeu com um breve discreto aceno e deixou a sala, sentindo-se perdida, traída e humilhada. 

         Vinte minutos após uma ferrenha discussão com o cardeal dentro do carro, no qual ele e a freira foram trazidos ao santuário, Caetano retornou para encontrar os homens de sua equipe sentados em volta da mesa de refeições, visivelmente tensos.

       Irmã Maria do Perpétuo estava em pé no mesmo local onde a deixara, com a mesma postura rígida, que manteve durante toda a deplorável cena de expulsão da freira mais jovem.

         - Espero que tenha dado uma surra no desgraçado. – “André” resmungou ao vê-lo. 

      - Não valeria o tempo ou o esforço empreendido – a voz da ex-freira ecoou na sala seguida por um silêncio “ensurdecedor”. 

          A visão da mulher que se escondia sob o hábito, teve o impacto de um soco no estômago de cada um deles. 

        A pele de tez morena, pálida por não tomar sol, contrastava com o discreto colorido do vestido que chegava solto à altura dos joelhos. O modelo confeccionado para ser discreto e confortável não conseguia esconder as curvas generosas. Ela não era uma mulher magra, como estava na moda nos últimos tempos, tinha deliciosas curvas. 

      Caetano bem que tentou ser discreto, mas assim como os demais homens da sala, não conseguiu evitar que seus olhos passeassem do rosto, que livre do capuz e dos óculos, revelavam grandes olhos castanhos e uma boca de lábios carnudos. O cabelo negro, bem curto, num corte quase masculino, praticamente deixando a mostra, o pescoço e a nuca de pele imaculada. Seguiu para baixo e por pouco não soltou um “uau”.Ela tinha os seios do tamanho certo para encher as mãos de um homem, nem pequenos, nem grandes demais. O vestido caia delicado em torno da cintura e dos quadris arredondados, que deveriam encher um par jeans com perfeição. Apesar de cobertas, ele percebeu que ela possuía coxas grossas. Os pés, livres dos sapatos horríveis que ela usava, pareciam confortáveis numa delicada sapatilha e ele quase sorriu ao constatar que ela tinha tornozelos cheinhos. 

          Maria da Anunciação entendia o choque de cada um deles. 

        Ainda devastada por tudo lhe que estava acontecendo, ficara estupefata ao se ver com roupas seculares. Não reconhecera a mulher no espelho, sentia-se nua e desprotegida sem as vestes que lhe eram tão familiares e confortáveis, como sua própria pele. 

         - Aqui está. – apontou para mala que havia depositado diante da superiora, assim que entrou na sala. – Como não sabia se também teria de devolvê-los, não os coloquei na mala. – estendeu caixa dos óculos e a aliança, que a marcava como esposa de Cristo. - Não será necessário devolvê-los. – a madre disse ao lhe devolver os óculos – Estarei rezando por você, enquanto vida o Senhor me conceder. – com aceno de cabeça se dirigiu à saída, seguida por “Matheus”, que fora designado para carregar a mala.


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