domingo, 17 de maio de 2015

Série Santuário 3.5 - Prefácio de um Amor - Capítulo 03



Senhoras e Senhores do Santuário! 

Minhas aconchegantes saudações! 

Chegamos ao terceiro capítulo de Prefácio de Um Amor!

Ainda estamos cinco anos antes dos acontecimentos do capítulo 1, e cabem alguns esclarecimentos. 

Nos acontecimentos narrados no capítulo, os acontecimentos narrados nos três primeiros livros ainda não aconteceram (exceto o resgate da Alícia). 

Ou seja:

Somente a equipe 1 conhece a verdadeira identidade dos irmãos Montessori. 

A missão na qual Marina e Caetano se conheceram, ainda não ocorreu.

Bourregard e Alicia ainda não se reencontraram. 

Angie e Javier ainda não se beijaram pela primeira vez. 

Humberto está vivo e é o líder da equipe 3.

Desejo, do fundo do coração, que apreciem o capítulo. 

Beijos e Boa Leitura!

Apreciem sem moderação. 




"Um homem só encontra a mulher ideal quando olhar no seu 
rosto e ver um anjo e, tendo-a nos braços, ter as tentações que só os demônios provocam..."
Pablo Neruda




Noventa e dois dias depois...

Uma sensação de genuíno prazer percorreu seu corpo ao pisar no hall do Teatro Municipal de São Paulo para assistir ao espetáculo daquela noite. 

O edifício, construído no início do século XX, transbordava história e arte. A imponente arquitetura inspirada na Ópera de Paris, com influências renascentistas e barrocas, era um deleite para os olhos. 

O sangue grego que corria em suas veias deleitava-se com a grandiosidade e beleza arquitetônica do teatro. 

"Opulência era quase um sinônimo para nacionalidade grega" - Kiron pensou divertido, ao ajeitar os punhos do terno de corte impecável.

Após uma difícil missão, gozava o merecido período de licença do esquadrão. Em uma guerra ou missões em áreas de conflito, um soldado se deparava com o que há de pior na humanidade e isso poderia, com o tempo, corroer sua alma, matar seu espírito e esmagar sua essência. 

"Não aconteceria com ele." 

Aos vinte e oito anos, aproveitava o tempo fora de combate para alimentar sua alma.

Sua terra natal era nada menos que o berço da civilização ocidental. E como herdeiro do legado dos filósofos e escritores, amava a arte e suas manifestações. Adorava musica clássica, teatro, cinema, visitar museus, pinacotecas e bibliotecas. Ler também era uma de suas grandes paixões. Também era apaixonado pelo bom e velho rock and roll.

"Àquela noite, banquetearia seu espírito com boa música e dança" - Kiron disse a si mesmo, satisfeito pela escolha do espetáculo, que trazia a dose de drama que todo homem ou mulher com sangue grego em suas veias, apreciava. 

Tinha preferência pelo ballet clássico, porém as críticas positivas sobre o espetáculo de forte carga dramática, que mesclava ambos, o clássico e o contemporâneo, chamara sua atenção. 

A privacidade do camarote, um privilégio concedido a si mesmo, permitiria uma experiência intimista entre homem e arte. 

Ao caminhar pelo saguão, não deixou de notar os olhares femininos que atraía. Alguns ele correspondia com prazer e interesse, outros ele ignorava. Sorriu para uma linda mulher de curvas sinuosas, seios fartos, longos cabelos loiros e grandes olhos azuis que o miravam em escancarada cobiça. 

"Terminar a noite, sob os lençóis, com a "filha de Afrodite" seria a forma perfeita de encerrar àquela noite" - pensou. 

O corpo reagiu aprovando sua escolha. 

Um pigarrear masculino soou do seu lado esquerdo.

- Não sabia que apreciava espetáculos de ballet, soldado - Alberto Nascimento (Caetano Montessori) comentou parado ao lado do membro da equipe 3 do esquadrão, sem disfarçar a divertida ironia em sua voz. 

Não olhava para Kiron, sua atenção estava voltada para a imensa movimentação do salão. 

"Merda! Merda! Merda!" - Kiron praguejou ao ouvir a voz carregada de ironia do líder da equipe1 do esquadrão. Não teve tempo para uma resposta à altura da aberta provocação de Alberto Nascimento.

- Gosta mesmo de assistir homens dançando com malhas apertadas? - Javier perguntou com divertido sarcasmo ao parar ao lado direito do grego. Assim como o líder da equipe, não olhava para o soldado surpreendido ao seu lado. 

"Porra! Aquilo não era coincidência" - a mente do grego gritou. 

Kiron varreu com o olhar todo o hall do teatro e sentiu os pelos da nuca se eriçarem ao identificar a presença de quase toda a equipe 1. Estrategicamente posicionados, o francês, o árabe e o nórdico tinham uma privilegiada visão do hall do teatro, e quase ninguém os notava. Instalados nos "pontos cegos" do saguão, passavam quase desapercebidos. 

Faltava apenas o jovem geek, e ao identificar o quase imperceptível comunicador usado pelo esquadrão, Kiron entendeu que o rapaz estava, provavelmente, no santuário dando apoio à equipe.

O corpo e os sentidos entraram instantaneamente no modo soldado. 

- Isso se chama arte, coisa que saberia se tivesse o legado dos meus ancestrais - o grego retrucou em um tom de voz falsamente despreocupado. - Mas o que esperar de alguém cujos antepassados andavam nus na mesma época em que os meus criavam a democracia e esmagavam Tróia? - Kiron retrucou com indisfarçável arrogância, sem se importar com a incoerência cronológica das informações históricas. 

"O importante era devolver a provocação ao espanhol" - pensou divertido. 

Ninguém do esquadrão sabia ao certo a nacionalidade do homem a quem se referiam como espanhol. O sujeito poderia ter ascendência europeia, da América do Sul ou Central, para ele dava no mesmo. 

Caetano disfarçou o riso, causado pela rápida e ácida resposta de Kiron, com um discreto pigarro. 

"Que merda acontecia ali naquela noite?" - o grego perguntou-se. 

Javier deu um sorriso enviesado e sem olhar para o grego, deu sua opinião. 

- Se acha superior por seus ancestrais usarem roupas? Pois, em minha opinião, os meus é que eram os espertos - o espanhol comentou com bom humor. - Tudo seria muito mais prático se ainda andássemos nus, mas os seus antepassados, com sua pretensa civilidade, tinham que estragar tudo, não é mesmo? - perguntou em tom falsamente contrariado. 

A discussão absurda, sem nenhum embasamento histórico, divertia-os. 

- Na opinião dele, ainda andaríamos nus e caçando piolhos uns aos outros - a voz de Ângela soou um segundo antes da ruiva parar diante deles com uma expressão travessa na face de pele clara, salpicada por delicadas sardas. 

- Está linda, Ângela - Kiron cumprimentou a jovem enfermeira do esquadrão.

- O que faz aqui, Ana Néri? - Javier perguntou em um grunhido mal-humorado, sem dar a chance de a enfermeira agradecer o elogio. 

"Caralho! Por que essa garota não ficara em casa ou fora a um show de rock?" - Javier se perguntou contrariado. A jovem enfermeira parecia um imã para problemas. 

Ângela ergueu a sobrancelha esquerda, nenhum pouco intimidada com a ferocidade do espanhol. O fato de seu corpo despertar à simples visão do sujeito trajando o elegante terno escuro irritava-a ainda mais. 

- A mesma coisa que vocês! - ela respondeu mirando os três homens e revirou os olhos, contrariada por evidenciar o óbvio - Não que seja da sua conta, é claro - ponderou, dessa vez encarando apenas o espanhol. 

Ao perceber que Ângela não fazia ideia da presença dos demais membros da equipe, ou mesmo que estavam no teatro por algum tipo de missão, Kiron olhou para Alberto Nascimento que, discretamente, sinalizou indicando que a enfermeira não deveria ser alertada. 

- Essa sua boca esperta ainda vai metê-la em confusão, Florence! - Javier retrucou. 

Os lábios da ruiva se abriram em um sorriso que revelava que o alerta do espanhol viera tarde demais. 

- Está sozinha, Angie? - Caetano perguntou com um semblante sério. 

A enfermeira revirou os olhos mais uma vez. 

- Fique tranquilo, não tem ninguém para vocês aterrorizarem hoje! - ela resmungou irritada. 

Não importava o quão indignada se mostrasse, os sujeitos continuavam a interpretar a versão globalizada e aterrorizante da família Soprano à seus candidatos a namorados. 

Caetano a encarou, claramente questionando a informação. 

- Estou com amigas - esclareceu e apontou o grupo de três moças completamente diferentes entre si. - Sou amiga da Dora, a bailarina principal do espetáculo, fui convidada para estar aqui esta noite - esclareceu meio a contra gosto encarando o espanhol mal-humorado.

"Porra!" - Javier xingou em pensamento. "Angie conhecia os Baptistas, a coisa ia de mal a pior" - o espanhol pensou ainda mais contrariado. "A garota parecia um imã para problemas!" - resmungou consigo mesmo. 

- Minhas amigas estão me esperando, bom espetáculo para vocês! - a enfermeira se despediu e seguiu ao encontro das amigas. 

- Sabia disso? - Javier perguntou ao líder de sua equipe. 

- É óbvio - o chefe respondeu. - O Major era amigo do Coronel Garlipe - Caetano esclareceu. 

- Que merda está acontecendo aqui? - Kiron perguntou assim que estavam somente os três. 

- Está de licença - Caetano respondeu. - Aproveite sua folga - comentou.

- Tarde demais para isso - Kiron respondeu ao mesmo tempo em que percorria o saguão com os olhos procurando algo que estivesse fora do lugar. Algo que uma pessoa comum não perceberia.

E então os viu reunidos. 

Vestidos como civis, chamavam atenção por suas estaturas e ombros largos, assim como a semelhança dos traços que denunciava a herança familiar. Os três estavam acompanhados por belas mulheres, e Kiron percebera que se tratavam das esposas. Identificou também que, apesar das posturas aparentemente relaxadas, os três homens estavam atentos ao movimentado salão. 

"A equipe 1 estava no teatro para proteger família do major Baptista" - ele compreendeu. 

O militar era o braço direito e a ponte que ligava o esquadrão ao marechal e ao Ministro da Defesa, em missões de apoio não oficiais do esquadrão às Forças Armadas. 

"Um militar jamais pediria a ajuda de um civil, a não ser que a coisa fosse muito, muito ruim..." - Kiron ponderou.

Os lábios de Caetano se curvaram em um ensaio de um sorrio ao perceber que Kiron identificara o alvo da missão. 

"Uma vez soldado, sempre soldado" - pensou satisfeito. 

- Fique de olho, soldado - Caetano ordenou. 

Não eram necessários maiores explicações. 

- Entendido - Kiron respondeu. Sem armas ou equipamentos de comunicação, restava a ele o posto de observador, e o fato de ter reservado um camarote dava-lhe vantagem na tarefa. 

Com discretos gestos de cabeça, os dois homens se despediram e seguiram para lados opostos do salão. 

"Um brinde à folga perfeita" - Kiron grunhiu para si mesmo. 


***********


O silêncio e concentração marcavam a preparação do corpo de bailarinos, minutos antes do início do espetáculo. Apoiados às barras, ou mesmo no centro da sala, executavam os movimentos para aquecimento e alongamento dos músculos que seriam exigidos ao máximo durante os noventa minutos de espetáculo.

Atenta aos seus movimentos de aquecimento, Isadora contemplou o grupo de mulheres e homens completamente diferentes entre si, mas que compartilhavam da mesma paixão, a dança. 

Para eles, ser um bailarino era um estilo de vida. 

Dançar era uma arte que exigia paixão, força, entrega e muitos sacrifícios. A dor era uma companheira, quase que constante, na vida de um bailarino profissional. 

"Superação também era uma palavra excelente para definir esse estilo de vida" - Isadora ponderou consigo mesma. 

Bailarinos aprendiam desde muito cedo a superar a dor, o cansaço, o frio, a fome e a exaustão. Os desafios se tornavam ainda maiores em um país no qual os governantes tratavam a arte e a cultura como entretenimento elitista e de exclusão social. E para ela, e para grande parte do elenco daquele espetáculo, ainda havia um obstáculo a mais a ser superado, o preconceito racial. 

"O ballet não era uma arte para negros."

Isadora ouvira a maldita frase vezes demais. Desde o dia em que se apaixonara pelo ballet, ano após ano, o racismo a testara. Em algumas ocasiões, quase desistira diante da dor causada a sua alma, mas ao final, resistira e se tornara mais forte. 

Muitas vezes, o preconceito vinha disfarçado, e, em vez de atacarem a cor de sua pele, alegando não existirem protagonistas negras no ballet clássico, execravam sua estrutura corporal. 

"Você não tem o corpo de uma bailarina."

Não tinha um corpo esguio, com pernas e braços longos e longilíneos. Era de estatura baixa e apesar de magra, com os exercícios e treinamento adquirira massa muscular. Não era a imagem da boneca de porcelana que adornavam as caixinhas de música, mas era apaixonada por sua arte, possuía a técnica, a precisão e a leveza exigidas para a dança. 

Concordava com o princípio de que o ballet era essencialmente estético. Mas o que essas pessoas preconceituosas e retrogradas não entendiam é que a beleza se manifestava em diversas formas e de diversas formas. 

As dificuldades eram muitas, mas quando estavam sobre o palco, tudo era esquecido... 

Contar uma história através da dança era, para ela, um ato de amor. Sentir o encanto e a emoção do público fazia todas as dificuldades enfrentadas e sacrifícios que fizera valer a pena. 

"O meu carro que o diga" - Dora pensou com divertida ironia ao lembrar-se do mais recente sacrifício. 

Os irmãos ficaram furiosos quando descobriram que ela vendera o carro para investir o dinheiro no espetáculo independente. Mas, graças a Deus, o tempo mostrara que fora a decisão mais acertada de sua vida. 

Há quase um ano, quando reservaram o Teatro Municipal de São Paulo por uma semana, tinham uma única certeza: eram completamente loucos! 

A estreia acontecera há quase três meses e excedera todas as expectativas do grupo que sonhava se tornar uma companhia de dança. Lotaram o teatro em todas as noites, e fizeram mais duas apresentações extras. A repercussão alcançou a mídia e receberam convites para apresentações em outros estados. 

Àquela noite, os bailarinos retornavam ao Municipal como convidados para uma única e concorrida apresentação. 

Os compromissos individuais os impediam de continuar o projeto independente, que previra apenas as sete primeiras apresentações. Viajar pelo país com o espetáculo, fora um desafio, pois necessitaram reorganizar agendas pessoais para dar conta não somente das noites de espetáculo, mas também da programação de divulgação. 

Mas os frutos fazia cada loucura que fizeram valer a pena. 

Produzir e atuar o espetáculo de ballet, não os deixara ricos, ou coisa parecida. Mas agora seus nomes figuravam no restrito cenário da dança no país, e isso era o mais importante para cada um deles, o reconhecimento. 

Ao encerrar o aquecimento, Isadora inspirou e expirou várias vezes executando os familiares exercícios de respiração e mirou a si mesma no reflexo do espelho que cobria a parede. 

"O ballet era a sua vida" - repetiu para si mesma, em silêncio, o mantra que a acompanhava desde menina. 

Apesar de toda a insegurança e incertezas de sua profissão, não se imaginava fazendo outra coisa, vivendo de outra maneira. Sorriu para si mesma ao recordar o inesperado presente que a dança lhe dera. 

Usando a barra, ainda sorrindo, deu início os movimentos de alongamento. Tão importante quanto aquecer os músculos, alongá-lo concedia ao bailarino a elasticidade necessária para a perfeita execução dos movimentos. 

Atenta à intensidade correta a ser aplicada a cada posição e movimento do alongamento, Isadora sentiu o coração arder em gratidão ao ballet e as surpreendentes e inesperadas experiências que a dança lhe proporcionara. 

Voltou ao pensar nos ricos momentos que vivia duas vezes por semana. Nessas ocasiões, o ballet se transformara em uma ferramenta de resgate da identidade, alma e dignidade de crianças vítimas de violência. Nunca suspeitara que o trabalho voluntário seria um surpreendente aprendizado. Trabalhar com aquelas meninas e adolescentes fragilizadas e aterrorizadas, era um aprendizado constante. Aquelas meninas guerreiras, sem pretensão alguma, transformaram-na em uma pessoa melhor. 

O trabalho voluntário em dois abrigos para crianças e adolescentes vítimas de violência era o seu bem guardado segredo. Os abrigos estavam localizados em áreas de risco social, e sua família teria uma síncope coletiva caso descobrisse que frequentava locais subjugados pela prostituição e o tráfico de drogas. 

"Será que um dia eles conseguiriam enxerga-la como uma mulher adulta?" - perguntou a si mesma, e com bom humor respondeu a pergunta: "Nunca". 

Ao mudar de posição na barra, Dora avistou Saulo do outro lado da sala. 

Sem interromper seus movimentos, Dora experimentou a mesma e incômoda sensação que a perseguia desde que ele contara sobre seu novo relacionamento apenas três dias após terem terminado. 

Atencioso, Saulo auxiliava Karen, a atual namorada e também bailarina, com os exercícios de alongamento. A bailarina de traços orientais, pele de porcelana e longos e lisos cabelos negros era dona de um corpo longilíneo, de aparência delicada, muito diferente de seu corpo, definido por músculos magros. 

Isadora contemplou o próprio corpo que se assemelhava mais ao de uma atleta do que a de uma bailarina e voltou a mirar o casal que parecia entretido em um divertido e íntimo bate-papo.

"Não estava com ciúmes, não era esse o caso" - reconheceu. "Estava incomodada com a rapidez com a qual fora substituída" - admitiu contrariada. 

"Deveria existir um manual, em algum lugar, que ditasse uma regra sobre não ser de bom tom assumir um novo relacionamento, apenas setenta e duas horas depois de terminar o antigo" - ponderou com ironia. "E outra que determinasse ser expressamente proibido envolver-se com alguém do mesmo círculo profissional direto" - concluiu com sarcasmo. 

"Não existia um período de luto conjugal, ou coisa assim?" - ralhou consigo mesma ao iniciar a última série dos exercícios de alongamento. 

Quando os via juntos, como naquele momento, sentia a incômoda sensação de que, apesar de ter feito parte da vida dele por quase dois anos, não fora importante para ele. O peito se encolhia diante da fria e constrangedora constatação de que não fazia a menor diferença de com quem Saulo ia para cama, desde que tivesse uma vagina. Pensar que se submetera a essa situação, por quase dois anos, indignava-a...

"Como pudera se contentar com tão pouco?" - cobrou-se mais uma vez. 

O aviso de que faltavam apenas dez minutos para o início do espetáculo, a fez esquecer as especulações e decepções e se concentrar apenas na personagem e na bela e trágica história de amor que protagonizava. 

Os bailarinos sussurravam uns com os outros desejando boa sorte e gracejando piadas sem graça para amenizar a tensão que acompanhava os minutos que precediam o início da apresentação. 

Surpresa, Isadora viu o ex-namorado caminhar em sua direção antes de se posicionar para entrar no palco. 

- Tudo bem, Dora? - Saulo perguntou. Percebera que Dora o observara por alguns instantes enquanto ajudava Karen com o alongamento. 

Isadora sorriu ao perceber que Saulo esperava alguma reação negativa de sua parte à proximidade e intimidade demonstradas por ele à atual namorada. 

Ela não estava com ciúmes. Na verdade, Dora desejava do fundo do coração que ele fosse feliz. Não era culpa de seu ex-namorado o fato de ela ter se resignado a um relacionamento sem paixão por tanto tempo. 

"Não precisava de um relacionamento politicamente correto e civilizado. A mediocridade não era para ela" - constatou, satisfeita por suas escolhas. 

Sentiu orgulho da mulher na qual se tornara. 

Uma mulher forte, independente e apaixonada por sua arte. 

- Nunca estive melhor - respondeu sincera.

- Um minuto para entrar no palco! - a voz do contrarregra anunciou. 


**************

A expectativa percorria seu sangue ao sentar na elegante cadeira do camarote que reservara para assistir ao espetáculo. 

"A visão do palco era perfeita" - Kiron pensou ao abrir os botões do blazer e se acomodar de maneira confortável. 

Os olhos treinados esquadrinharam o teatro. 

Localizou o líder da equipe 1 e o espanhol sentados na terceira fileira, a mesma em que os Baptistas se encontravam. Estavam posicionadas um em cada extremidade. Identificou os demais membros da equipe posicionados em pontos estratégicos. 

O francês ocupava um dos camarotes mais próximos ao palco, e ele não gostou nada daquilo, pois significava que os artistas também estavam sob ameaça. O homem olhou em sua direção e trocaram um discreto cumprimento. 

Kiron esquadrinhou o espaço mais uma vez. Camarotes, fileiras e palco. 

"Limpo" - disse para si mesmo. 

Completamente alerta, voltou a mirar o majestoso palco do teatro. 

Estava preparado para experimentar duas horas do mais genuíno prazer cultural. Mesmo atento a qualquer movimentação suspeita, não abriria mão de embebedar sua alma com cultura, beleza e música. 

As críticas que lera sobre o espetáculo de ballet que interpretava a adaptação de uma história de um amor inter-racial em tempos de guerra, foram excelentes. O tema era perfeito para alguém como ele, afinal, como um bom grego, tinha a paixão por tragédias impressa em seu DNA.

Observava mais uma vez a movimentação do teatro quando ouviu passos próximos ao seu camarote, e cinco segundos depois, uma mulher de vibrantes cabelos cor de cobre e inteligentes olhos verdes "invadiu" seu camarote e, sem qualquer cerimônia, acomodou-se comodamente na cadeira ao lado da sua. 

- O que de fato está acontecendo aqui? - Ângela exigiu encarando o homem que conhecia como Dante Tommazelli. 

A enfermeira sabia que esse não era seu nome verdadeiro, assim como sua nacionalidade. Pois, apesar dos traços europeus, seus instintos gritavam que Dante não era italiano, coisa nenhuma. 

"Não que essas coisas fossem da sua conta" - ralhou consigo mesma. 

Kiron mirou a bela e jovem enfermeira do esquadrão. Timidez nunca fora o problema de Angie. O que deixava o líder do esquadrão prestes a adquirir cabelos brancos era essa impetuosidade misturada a uma teimosia ímpar. 

- Quando eu comprei o ingresso, o anúncio dizia ser um espetáculo de ballet - respondeu em tom divertido, encarando a jovem. 

Kiron percebeu que o francês, ao se dar conta da presença de Angie ao seu lado, dera um passo para trás, ficando assim fora do alcance da visão da enfermeira. 

Ângela bufou de um jeito nada feminino. 

- Eu pareço ser tão idiota assim? - perguntou. 

Kiron sorriu. A mulher sabia ser direta como poucas pessoas que ele conhecia. 

- Você é uma das pessoas mais inteligentes que conheço - respondeu sincero. 

- Então seja sincero! - ela exigiu exasperada. 

Ângela estava preocupada. Tivera a impressão que os homens da Abaré estavam atentos a qualquer movimentação em torno da família de Isadora. E tudo nela gritava que algo muito ruim estava para acontecer. 

- Estou sendo sincero - Kiron respondeu com fingida diversão. 

Ângela bufou novamente.

- E aqueles dois são tão apaixonados por ballet que compararam lugares nas primeiras fileiras? - perguntou, apontando na direção dos assentos de Alberto Nascimento e do espanhol. 

Kiron precisou fazer um esforço muito grande para não rir. 

- Qual o problema? - ele perguntou com uma expressão inocente em seu rosto. 

Ângela grunhiu irritada. 

- Se quer minha opinião, acho que eles perderam alguma aposta - ele comentou com um despreocupado dar de ombros, torcendo para que ela comprasse a mentira plausível, pois as apostas promovidas pelos membros da principal equipe do esquadrão eram quase lendárias. 

Ângela estreitou os olhos verdes, claramente ponderando sobre a possibilidade. 

- Acha mesmo? - questionou visivelmente balançada. 

- Tudo é possível - Kiron respondeu. 

Sentia-se culpado por enganar a mulher cuja face o fazia pensar em Afrodite, mas possuía o coração e alma dignos das amazonas que serviam a deusa Ártemis. 

Ângela mirou a fileira em que estavam Alberto e Javier. Seu coração teimava em gritar que algo estava muito errado. Voltou a encarar o homem que possuía olhos de uma incomum cor verde acinzentado. 

- Diga-me apenas que os Baptistas estão seguros. - pediu, mirando o falso italiano. - Por favor - insistiu. 

Kiron não desviou os olhos. 

- Quem são os Baptistas? - perguntou com uma expressão confusa em sua face. 

"Porra!" - xingou em silêncio.

Tinha horas que a vida era uma merda completa. Mentir para a enfermeira membro de seu esquadrão, a qual respeitava e admirava, corroía sua alma. 

"Mas essa decisão não cabia a ele" - admitiu. 

Desobedecer a uma ordem, não era uma opção para um soldado. 

Ângela suspirou exasperada e mirou, pela primeira vez, o palco do teatro.

- Uau! - exclamou admirada. - A vista daqui é excelente! - comentou ajeitando sua posição. 

Kiron riu e balançou a cabeça ao entender que a enfermeira não tinha intenção alguma de voltar para junto das amigas com as quais viera ao teatro. 

- Seja bem-vinda, Angie - Kiron disse em uma voz baixa, claramente divertido com o atrevimento da ruiva. 

Angie sorriu agradecida por ele não se mostrar incomodado ou mesmo irritado com sua presença, como sempre acontecia quando se aproximava do espanhol. Javier tinha um talento excepcional para fazê-la se sentir como uma criança indesejada em meio a adultos que apenas toleravam sua presença. 

- Obrigada, Dante - Angie respondeu sincera e se acomodou para deleitar-se com a apresentação. 

- Disponha - Ele respondeu e piscou charmoso para a enfermeira, que fingiu bufar, mas ainda sorria ao mirar o palco do teatro. 

"No dia em que o espanhol acordar e perceber que ela já não era mais uma adolescente e a maneira como olha para ele, o sujeito estará perdido!" - pensou divertido. 

As luzes do teatro se apagaram. 

O espetáculo já vai começar! - Ângela anunciou em um sussurro entusiasmado. 

Em seguida, uma melodia triste e melancólica anunciava o início da apresentação.

***************

Atordoado. 

Kiron experimentava a sensação de completo atordoamento pela primeira vez em sua vida.

"Nem mesmo quando fora atingido em missões em zonas de guerra ou sentira em seu corpo os efeitos de ser estar próximo à área de uma explosão, experimentara as sensações que dominavam seu corpo e sentidos desde que a pequena bailarina surgira sobre o palco" - admitiu, completamente fascinado. 

Logo após as luzes se apagarem e a melodia melancólica ecoar pelo teatro, as luzes cênicas se acenderam sobre o palco e a triste história de amor começou a ser contada pelos talentosos bailarinos. 

Uma coreografia bela e dramática apresentara os protagonistas, antes que esses se conhecessem. O bailarino principal mostrou toda sua técnica, precisão e leveza ao dar vida ao jovem branco, rico e idealista. Os passos repletos de energia e lirismo remetiam às emoções e ideais da juventude. 

As notas mudaram e ganharam nuances delicadas e femininas. 

Uma bailarina, de pele cor de Frappé, o saboroso café grego, se destacou do núcleo inter-racial. A pequena mulher se agigantava através da dança. Em cada movimento da elaborada coreografia, um sentimento surgia, uma emoção explodia.

Não conseguia desviar os olhos da mulher que dançava com o coração, nas pontas de suas sapatilhas. 

Kiron se forçou a desviar sua atenção do palco para o público cativado pela beleza estética e lúdica da apresentação. Os olhos treinados varreram o espaço na fraca iluminação vinda do palco. Não identificou qualquer sinal de ameaça. Sem permitir que a enfermeira percebesse, olhou na direção do camarote do francês, o homem continuava fora de seu campo de visão. 

Seduzido pela beleza musical e artística do ballet, voltou a se concentrar na história que continuava a ser contada pelos artistas.

E lá estava ela, a bailarina com pele cor de café se destacava dos demais por sua técnica e paixão. Kiron sentiu a ligação profunda entre a pequena mulher e a personagem. De alguma maneira, que ele não sabia compreender, a bailarina tornava viva a personagem da história fictícia. 

Os protagonistas, enfim, se encontraram sobre o placo, e o amor aconteceu em uma coreografia sensual, encantadora. Ternura e emoções viscerais se alternavam enfeitiçando a plateia, que completamente cativada, respondia às emoções dos personagens. 

Angie fungou ao seu lado, em um choro silencioso e emocionado. Kiron constatou que ela não era a única. 

A entrega ao amor sensual e carnal demonstradas em um equilíbrio perfeito entre suavidade, sensibilidade e sensualidade. 

Sem pedir permissão, ou prévio aviso, seu corpo reagiu desperto, faminto. 

E ele sentiu sua respiração falhar, literalmente.

"Yáónoma tu Thée"* - rogou. 

Estava tão atordoado que não se dera conta que, mesmo em silêncio, usara seu idioma natal. 

"Porra!" - xingou em bom português. 

A bailarina capturara não somente sua atenção, mas suas emoções.

O amor manifestado através da arte embebia seu espírito, alimentava sua alma e fazia seu sangue arder de uma forma inesperada. 

"Théeum"* - rogou mais uma vez, em silêncio, e novamente não percebeu que o fazia em grego. 

A morte, cruel e inescrupulosa, invadiu a sublime felicidade dos amantes, e a dolorosa e definitiva separação aconteceu. A vida do jovem protagonista é ceifada, e a jovem amante apaixonada chora a dor da separação e da solidão. 

Completamente encantado, assistia a bailarina expor seu coração no palco. A pequena mulher desnudava sua alma para uma audiência arrebatada com a comovente interpretação.

Lágrimas doces se derramavam por muitas faces. 

A paixão, a dor e a sensibilidade extravasadas ao limite do impossível, do impensável. Então, o silêncio da morte, mais uma vez, invadiu o teatro quando a protagonista literalmente morreu de amor e por amor. 

Os sons de ofegos encantados percorreram o teatro, com o reencontro dos amantes, agora em outra vida, anunciando que mesmo a eternidade era um momento breve demais para aquelas duas almas enamoradas. 

Kiron sentia o peito arder. 

Assisti-la dançar era quase como tocar, por um fugaz momento, a divindade.

"Não estava preparado para ela... Mas era como se sua alma a reconhecesse." 

"Thée um!* Como era possível?" - perguntava-se.

Cedo demais, as cortinas se fecharam, roubando-a de sua vida. 

Perplexo, Kiron via o espetáculo chegar ao fim.

"Chronos fora seu inimigo aquela noite" - pensou frustrado, irritado.

Não estava preparado para ela, tampouco aceitava deixa-la partir sem ao menos ter provado seu sabor, sentido seu aroma. Não sabia seu nome, qual a sua idade, se existia um namorado, marido ou filhos, mas a pequena bailarina de pele cor de café tocara sua alma. 

"Não poderia tê-la" - a consciência gritava. 

- Quer conhecê-la? - a voz de Ângela soou em seus ouvidos, resgatando-o da névoa de desejo e luxúria na qual se afundava a cada segundo. 

Ainda mais atordoado, Kiron compreendeu que se esquecera da presença de Angie ao seu lado, da presença da equipe 1 no local e da ameaça aos Baptistas. 

Merda! Merda! Merda! - Praguejou em silêncio. 

Ao se levantar, buscou com os olhos a localização dos Baptistas, que também se levantavam naquele momento, assim como Alberto Nascimento e o espanhol. Com gestos falsamente despreocupados, calmamente fechou os botões do blazer. 

Não permitiu que Ângela notasse o quão atônito estava. 

- Notei que ficou encantado com o espetáculo, não adianta disfarçar - Angie provocou o homem de olhos verdes acinzentado. Queria devolver a gentileza com que ele permitiu que invadisse seu camarote. 

Kiron sorriu, um sorriso calculado. E vestiu a máscara de espontaneidade. 

- Não preciso fingir. Foi um espetáculo primoroso. Ficarei honrado em cumprimentar os artistas. 

Ângela sorriu satisfeita. 

- Então vamos, Sr. Tommazelli, queira me acompanhar - Angie disse com divertida cerimônia. 

- Depois da senhorita - ele disse galante e apontou a saída do camarote. 

Cada célula de seu corpo queimava com a expectativa. Nunca uma mulher mexera tanto com ele. 

- A propósito, como conseguiu passe para os bastidores? - perguntou curioso. 

- Eu e a Dora, a bailarina principal, nos conhecemos desde meninas. O Major Baptista e meu pai eram amigos - Angie comentou ao alcançarem o corredor. 

Kiron usou todo seu autocontrole para não demonstrar sua reação a menção da relação da pequena bailarina com a família do Major. 

"Merda!" - praguejou em silêncio. 

- Os Baptistas que citou quando invadiu meu camarote? - perguntou em um tom despreocupado. 

- Esses Baptistas - Angie confirmou. -A Dora é a filha caçula do Major - esclareceu. 

"Porra!" - a mente de Kiron gritou. 

Por isso o francês ficara próximo ao palco, a estava protegendo. 

Uma sensação de fúria percorreu seu corpo e comprimiu seu peito ao imaginar quem ousava ameaçar a vida da bailarina com pele cor de café. 

"Filha mais nova do Major" - Kiron pensou, caminhando ao lado da enfermeira em meio ao corredor lotado de pessoas. 

Se ele fosse um homem inteligente ou sábio, caminharia na direção oposta. 

Não existia mulher mais proibida para qualquer membro do esquadrão.


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Glossário: 

Yáónoma tu Thée! - Pelo amor de Deus!

Thée mu - Meu Deus



Frappé: A história do "frappé", data de 1957, quando um representante de café, presente em uma Feira Internacional em Tessalónica, decidiu fazer um café instantâneo. Não tendo água quente usou água fria e agitou num shaker. Deve ter sido imediatamente um sucesso mas desconheço como se divulgou de modo a tornar-se numa bebida nacional grega: espumante de café instantâneo com gelo e açúcar, para ser bebida com canudinho. Tem um sabor diferenciado e marcante e a sensação ao bebê-lo é que lhe foi adicionado gelado de chocolate, tanto pelo gosto como pela consistência. A medida que o gelo vai derretendo, a espuma, que contém café, se mistura com este e a bebida se reconstitui. O que justificaria o tempo prolongado que as pessoas ficam em qualquer esplanada na Grécia.

O happy hour na Grécia é a base de café, ou melhor, Frappé, o famoso café gelado. Os gregos saem do trabalho e lotam os cafés de Atenas (que são milhares, em cada esquina da cidade tem um). Detalhe que, antes disso, eles provavelmente já estavam tomando café no trabalho.


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