sábado, 9 de agosto de 2014

MEU DESTINO É VOCÊ - Capítulo 01


Uma manhã comum

Theodoro Santini contemplou o reflexo de sua imagem no amplo espelho da bancada do banheiro. O homem elegantemente vestido que o olhava de volta, parecia encarcerado em uma prisão de tecidos caros e gravata de seda.

- Merda! – resmungou ao ajeitar a gravata.

Ele era um homem de jeans, camisetas e sapatos informais. Porém, naquela manhã não tinha escolha. A reunião com o responsável pelo patrimônio da Casa das Rosas exigia uma boa apresentação.

A Casa das Rosas era um antigo e elegante edifício localizado na tradicional Avenida Paulista. O imóvel, tombado pelo patrimônio histórico, possuía um grande e infelizmente esquecido jardim. Atualmente o prédio era administrado pela secretaria de cultura do governo do estado.

Theo olhou novamente para seu reflexo. Praguejou ao perceber que o nó da gravata estava horrível. Irritado soltou a peça e recomeçou.

Fazia um bom tempo que um projeto não o deixava tão entusiasmado. Sentia o sangue correr mais rápido em suas veias, toda vez que pensava nos planos que tinha para aquele trabalho.

Há anos cobiçava a chance de por as mãos naquele jardim...

Desde que Sarah, sua irmã mais velha, assumira o cargo de coordenadora de projetos literários, ele visitava regularmente a Casa das Rosas, esperando a oportunidade que o faria concretizar os planos que tinha para o lugar. O jardim, apesar de abandoando nos últimos anos, tinha potencial. Sob suas mãos, ficaria de tirar o fôlego. As cores e perfumes seriam uma tentação para os sentidos. Planejava plantar espécies raras de rosas e instalar um sistema de irrigação, que manteria as flores e vegetação frescas e vivas. Mesmo no auge do verão ou do inverno.

- Você tem de ganhar o contrato primeiro - Repreendeu à imagem refletida no espelho.

Queria muito ganhar aquele contrato. Não era pelo dinheiro, financeiramente, não era tão atrativo assim. Mas, pela satisfação e realização que representava. Todo profissional deveria experimentar a sensação libertadora de trabalhar por puro prazer.

Apesar de formado em arquitetura paisagista, sabia possuir mesmo, era um coração de jardineiro. Amava trabalhar a terra, prepará-la para receber as sementes e mudas. Transformar um pedaço estéril de chão em um espaço vivo, repleto de plantas de cores vibrantes, trazia uma sensação de realização única.

Esse era um dos motivos de não haver montado um escritório, apesar de possuir documentação como pessoa jurídica. Não desejava um. Assim como não desejava ficar preso oito horas por dia, atrás de uma mesa, desenhando projetos para outros executarem. Trabalhava em casa, quando o projeto exigia plantas ou documentação específica. Sua equipe contava com cinco funcionários. As reuniões, quando necessárias, eram realizadas nos locais aonde o serviço seria realizado, pois, se ocorriam problemas ou imprevistos, tudo era resolvido com o conhecimento do espaço e material que sabiam dispor. Um escritório de contabilidade lidava com toda a burocracia, impostos e taxas inevitáveis. 

Apesar do sobrenome tradicional e das comodidades de ter nascido em uma família com recursos financeiros, era um homem simples, que gostava de coisas simples. Amava o trabalho braçal e estar ao ar livre.

Não suportaria ficar preso entre quatro paredes.

Um malvado sorriso se desenhou em seu rosto. A não ser é claro, que elas fossem de um quarto e estivesse em companhia de uma bela mulher. Pensou com típica arrogância masculina. 

- Foda-se! – Xingou tirando a gravata. 

Ele não era aquele homem elegante.

As mãos calejadas e os cabelos que há muito precisavam de um corte, contradiziam a imagem sofisticada.

Decidiu enfrentar aquela reunião sem perder-se na identidade do desconhecido que enxergava no espelho. Estaria apresentável, é claro, mas ainda seria Theo Santini. Desistiu da gravata, trocou a calça social por um par de jeans e os apertados sapatos de bico fino, por um par mais confortável e menos formal. Conferiu seu reflexo do espelho e abriu dois botões da camisa social.

- Agora sim – disse aprovando a mudança.

Consultou o relógio e constatou que se desejava chegar com os estratégicos quinze minutos adiantados, teria que se apressar. Pegou o canudo com as plantas para apresentação do projeto, o Ipad, a pasta executiva com três cópias da proposta, as chaves da casa, a carteira e pegou a chave do carro, mas a repôs no lugar. Chegaria mais rápido indo de metrô, do que enfrentando o caótico trânsito de São Paulo. Estava na porta da frente, quando recordou dos papéis que a irmã esquecera mais cedo e apressado, entrou novamente em casa.

- Porra! Isso é um pesadelo! – Praguejou entre os dentes ao se deparar com o calhamaço de papel que tinha mais de trinta centímetros de altura.

Mais uma vez resmungou contra a cabeça de vento de sua irmã. Desde que perdera o marido há dois anos em um acidente aéreo, Sarah divida seu tempo entre três empregos. Não por necessidade financeira, mas emocional. Costumava dizer que trabalhando não tinha tempo para sofrer. Lecionava literatura em duas universidades e há seis meses assumira a coordenação de projetos literários da Casa das Rosas, o calhamaço de papéis sobre a bancada de sua cozinha, nada mais era que trabalhos de seus alunos. Todos eram manuscritos e estavam devidamente revisados. Se os folheasse, encontraria observações escritas por ela em cada um deles. A mulher era metódica! Pensou divertido ao recordar as constantes discussões por ela não se conformar com sua desorganização.

Amava sua irmã e seus sobrinhos, mas todas as vezes que Sarah dormia em sua casa, esquecia alguma coisa. E sempre eram objetos e documentos que ela necessitava com urgência. Pelo menos dessa vez, não precisara alterar a programação do seu dia. A irmã estaria durante toda a manhã supervisionando um workshop com escritores na Casa das Rosas. 

O problema era que os papéis não estavam em pastas ou encadernados. Estavam separados em cinco blocos, presos por clipes metálicos. Um dos clipes parecia que não conseguiria conter as folhas por muito tempo.

Consultou novamente o relógio.

Tinha de sair naquele instante!

- Seja o que Deus quiser! – Profetizou, equilibrando a “montanha” de páginas, entre seu Ipad e a pasta executiva.

Ao fechar a porta atrás de si, os sons da metrópole em plena atividade encheram seus ouvidos. Carros, buzinas, trabalhadores construindo novos edifícios ou consertando as calçadas.

Atravessou a rua e ouviu as frases cheias de humor dos feirantes que trabalhavam na feira livre que tomava algumas quadras de uma das ruas paralelas. Caminhava a passos largos, os pensamentos voltados para a reunião que aconteceria logo mais, determinado a caminhar os dois quarteirões até a estação do metrô o mais rápido possível.

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- Já tomou sua decisão?

Eva suspirou ao ouvir a pergunta e por um momento, permitiu-se apenas devolver o olhar da mulher do outro lado da mesa. Desde que Laura a convidara para aquele café da manhã, desconfiou que a sua provável mudança para Londres estivesse na pauta da refeição. Agora estava sentada, na elegante sala de jantar da amiga, sendo questionada sobre seu futuro. 

Conhecia Laura Mondrian há mais de vinte anos. Na época, com apenas oito anos, a mãe, determinada que filha trilhasse um caminho diferente da vida humilde e sofrida que levava a inscreveu em vários cursos, ministrados em um instituto de incentivo à música clássica, recém-inaugurado, na comunidade na qual moravam. Durante algum tempo, no lugar também foram ministrada aulas de balé clássico. A mãe de Laura, Heloisa Mondrian, que já fora a primeira bailarina do Teatro Municipal de São Paulo, era a professora. A professora Helô sempre levava a filha Laura para o instituto. Assim nascera a amizade entre a menina negra da comunidade pobre e a ruiva espevitada, que morava em uma confortável casa na área nobre da cidade.

Laura seguiu a carreira da mãe. Eva, apesar de ter praticado balé por alguns anos, apaixonou-se irremediavelmente pelo violoncelo e após vários anos de estudo, foi indicada, através do instituto, há varias bolsas de estudo no Brasil e exterior. Em todo esse tempo de amizade, compartilharam alegrias, tristezas, vitórias e derrotas. Chorara em seus ombros a angustia do fim sofrido de uma história de amor e a dor lacerante da perda da mãe, há três anos. Acolhera Laura em seus braços e a consolara, quando uma queda de cavalo, roubou a vida do marido de Laura após breves seis meses de casamento. Por trás da figura pequena e frágil da bailarina, encontrava-se uma mulher que era um misto de guerreira e leoa.

A amizade que as unia era preciosa, desses sentimentos raros e sinceros, que forjavam laços eternos. Era por isso, que às vezes, Laura não se intimidava em ser extremamente invasiva, como era naquele momento.

- Então? – Laura insistiu com uma sobrancelha ruiva erguida.

- Ainda estou pensando – Sabia ser uma resposta evasiva, porém não mentia. Ainda não tomara uma decisão definitiva.

- Não acredito que está considerando a possibilidade de não aceitar o convite! - Laura ralhou exasperada.

- Tem muita coisa a considerar Laura! – Eva protestou.

- Como o quê, por exemplo? – A amiga insistiu.

- Tenho meu emprego, meu apartamento, o trabalho no instituto e que eu adoro. Meus amigos e minha vida estão aqui – Argumentou.

As razões para ficar soavam fracas até mesmo para ela. 

- Você nasceu para ser mais que uma professora de música.

Laura enfatizou, referindo-se ao emprego da amiga. Contemplou a beleza negra de Eva enquanto se perguntava o que se passava na cabeça da outra mulher. Os cabelos cacheados eram a única concessão que a mulher fazia a vaidade. Eles chegavam às costas e àquela manhã, metade estava preso com uma presilha divertida em forma de nota musical. O porte clássico e elegante que ganhara, nos poucos anos de aula de balé, era tão natural para ela, quanto respirar. Os olhos de um castanho expressivo, o nariz afilado e os lábios cheios, criavam um rosto delicado, de beleza exótica.

Laura sempre invejara, em um bom sentido, a beleza de Eva.

- Esta fazendo novamente – Eva resmungou.

- Fazendo o quê?

- Me olhando dessa maneira que indica que vai me indicar uma dieta para queimar meus cinco quilos extras em uma semana, o telefone da sua esteticista e me fazer contratar esse torturador que você paga mensalmente e chama de personal trainer.

Laura riu divertida do tom ofendido da amiga.

- Só para constar, você deveria emagrecer uns oito quilos – ironizou com humor.

- Não preciso usar manequim trinta e seis, como você. Estou feliz com o número quarenta – Eva rebateu o comentário ao mesmo tempo em que fazia uma anotação mental para começar uma dieta na hora do almoço, pois as últimas roupas que comprara, foram número quarenta e dois.

Parecia que a modelagem do número quarenta diminuía a cada dia...

- Por isso a odeio – Laura declarou sem convicção alguma. – Deveria existir uma lei, que proibisse uma mulher tão bonita de não dar atenção a si mesma.

- Alto lá! – Eva fingiu protestar, aliviada pela mudança de tópico da conversa – Eu tenho meus momentos de vaidade e até tenho usado batom e rímel regularmente.

Laura riu mais uma vez e contemplou Eva com seriedade.

- Tem a chance de fazer história Eva – retornou ao tópico principal - Será a primeira violoncelista negra, latina e brasileira a fazer parte da Orquestra Sinfônica de Londres e ainda por cima, com a honra de ter sido convidada! É um convite para aceitar sem hesitar um instante sequer. O que a prende aqui?

Eva não conseguia responder aquela pergunta.

Era a realização de uma vida dedicada à música. Os sacrifícios que ela e mãe tiveram de fazer passaram como um filme em sua mente. A filha de uma humilde diarista, tocando na maior Orquestra Sinfônica do mundo!

A realidade superava inclusive os sonhos.

Por outro lado, havia aquela sensação forte que a perseguia desde que abriu e leu a carta convite dias antes. Sentia, de uma maneira tão intensa, quanto irracional, uma terrível sensação de perda, todas as vezes em que se imaginava embarcando para Europa. Viveu a maior da parte de sua vida em república ou dormitórios, por conta dos cursos e especializações. Aos vinte oito anos, desejava estabilidade, a sensação de pertencer a um lugar e a alguém.

Como explicar tudo isso a Laura sem correr o risco da amiga marcar uma consulta com um psiquiatra, ainda para aquele mesmo dia? Perguntava-se, quando ouviu o alarme do celular.

Obrigada Senhor! Agradeceu em silêncio.

- Continuamos essa conversa depois – disse ao mesmo tempo em que deixava a mesa – Está na minha hora. Vou escovar os dentes e tenho de ir – comentou concentrada em pegar a nécessaire

- Mas você nem tomou café direito – Laura protestou.

- Ótimo, assim já começo a dieta que você tanto me cobra! – retorquiu com uma ironia divertida.

- É bom não se esquecer de passar o rímel e o batom! - Laura resmungou para a porta fechada do banheiro.



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