Capítulo 4 – Desencontros
Oito dias mais tarde.
A chuva incessante caía desde as primeiras horas da manhã,
amenizando o intenso calor fora de época naquele início de outono.
Guarda-chuvas e capas de todas as cores e formas, davam um novo colorido às
ruas da cidade.
Após horas de chuva intensa, no início da noite, a metrópole
apresentava os sinais urbanos do crescimento desordenado. Diversos pontos de
alagamentos, congestionamentos em diversas avenidas da cidade, transporte
coletivo interrompido e milhares de trabalhadores impedidos de voltar às suas
casas.
- Isso só pode ser brincadeira!
Theo resmungou, no interior da pick-up que usava para o trabalho,
ao se deparar com o quinto ponto de alagamento em menos de quarenta minutos.
- Merda! Xingou irritado.
Fez o retorno e seguiu em direção da única opção que restava de
via de acesso ao seu destino. Poderia arriscar entrar com o utilitário nas ruas
alagadas, o perigo porém, seriam os buracos e bueiros abertos e encobertos pela
água.
Praguejou mais uma vez ao pensar na intensidade da chuva.
Se continuasse a cair água daquele jeito durante a noite toda, o
trabalho que ele e a equipe realizaram durante o dia seria jogado pela janela.
- Caralho! - Xingou mais uma vez ao encontrar sua última opção
debaixo d’água. A situação parecia ainda pior que nas outras avenidas.
Mais uma vez, ele estava sem sorte.
Nos últimos oito dias, esse era o quinto encontro que marcava com
a musicista, para entregar a carta convite da Sinfônica de Londres.
Pela quinta vez, não conseguiam chegar ao local marcado.
Oito dias antes, ele esteve no conservatório de música mais
tradicional da cidade, local onde a professora Eva Martins ministrava aulas de
violoncelo, violino e piano. Sua missão, entregar, em mãos, o documento
resgatado por sua irmã. Mas ao contrário do informado à Sarah, a
professora não dava aulas no período da tarde e sim pela manhã. Quando chegou
ao lugar, fazia menos de dez minutos que a musicista deixara o local.
A recepcionista do lugar se negou a dar o número de telefone ou
endereço da professora, afirmando que a política do estabelecimento prezava
pelo bem-estar e segurança dos funcionários.
- Como se um psicopata fosse pedir o endereço ou telefone de
alguém em seu local de trabalho! – resmungou no interior da pick-up com a
recordação.
Após muito argumentar, a mulher concordou em entregar um bilhete,
que ele escreveu à mão. No texto explicou estar de posse da carta e pediu
a musicista para entrar em contato.
No dia seguinte, pela manhã, recebeu cinco mensagens seguidas em
seu aparelho celular. Nos dois primeiros, Eva Martins se identificava e
demonstrava o alívio e gratidão pela correspondência localizada. Na terceira
mensagem, ela explicava que estava afônica, perdera a voz e essa era a razão
das mensagens de texto. As seguintes eram negociando a entrega do documento.
Todas as mensagens tinham um toque de humor, com imagens ora
divertidas, ora irônicas. Ela ria de seu próprio infortúnio e ele respeitava
alguém que conseguia manter o bom humor em uma situação crítica.
Theo simpatizou com a mulher logo nas primeiras mensagens.
Marcaram um encontro no conservatório no dia seguinte pela manhã,
porém uma emergência no trabalho, o deixou com o dia inteiro comprometido.
Na tarde seguinte, foi a musicista que teve um problema.
A mulher também dava aulas em uma fundação sediada em uma
comunidade carente. Pelo que ele pode compreender pelas mensagens recebidas e
por reportagens na TV, traficantes fecharam a comunidade por vinte e quatro
horas. Empregados de escolas, creches, posto de saúde, assim como outras
pessoas que trabalhavam no bairro, foram impedidos de deixar a comunidade.
Ela e todos os funcionários da fundação pernoitaram no prédio da
instituição. O incidente não a fez desistir do trabalho, o que o fez nutrir um
profundo respeito pelos ideais e coragem dessa mulher.
Há dois dias, seu sobrinho foi parar no hospital com suspeita de
infecção intestinal. Sentiu o peito encolher, ao recordar o quão indefeso o
garotinho parecia naquele quarto hospitalar, com as agulhas do soro e medicação
ferindo a pele infantil. O rapazinho se comportou como um homem, tranquilizando
a mãe que não conseguiu disfarçar seu desespero.
- Graças a Deus, tudo não passou de um susto – sussurrou para si
mesmo.
Sorriu ao recordar de sua expressão de desagrado, quando propôs à
Eva que se encontrassem no dia anterior e recebeu o torpedo no qual ela pedia
desculpas por ter um compromisso em Minas Gerais. Uma apresentação, pelo que
ele entendeu.
Sendo muito sincero, ficara mais frustrado que contrariado. Estava
curioso para enfim conhecer a bem humorada, talentosa e pelo que notara,
batalhadora Eva Martins. Imaginava-a com a idade e aparência similares a de sua
irmã. Eva parecia tão determinada quanto Sarah.
Não estava atraído por ela. Até porque, a imagem de uma mulher de
pele cor de chocolate e olhos da cor de whisky continuavam a invadir seus
sonhos e pensamentos. Mas sentira uma empatia com a violoncelista desde a
primeira mensagem recebida.
E era por esse motivo, que a chuva e os pontos de alagamentos,
infelizmente comuns em situações como aquela, roubaram seu humor àquela noite.
Após tantas conversas divertidas por SMS, e imprevistos, ele e a musicista
decidiram enfim se encontrarem pessoalmente em um jantar informal. Combinaram
um menu com a cara de São Paulo, ou seja, pizza.
Mais uma vez se perguntou qual seria a aparência dela. As
mensagens de texto eram de um português impecável e elegante, o que para ele
denunciava a sua idade e formação acadêmica. A musicista conseguira uma posição
de destaque internacional em um país conservador. Esse tipo de conquista
somente se consegue após longos e árduos anos de trabalho, aliado ao talento.
Eva deveria ter uns dez anos a mais que sua irmã, ponderou,
reconsiderando a idade da professora de música.
Já pensara em pesquisar sobre ela na Internet, mas nos últimos
dias chegara à sua casa tão cansado, que somente respondera os e-mails
profissionais e nada mais.
Tentava encontrar uma alternativa, para chegar a seu encontro,
quando o toque do celular anunciou a chegada de mais uma mensagem de texto.
Antes mesmo de ler, ele sorriu, ao identificar o número de Eva Martins no
aparelho.
Leu a mensagem e respirou fundo desanimado. Ele não era o único
preso pelo alagamento. Ela estava presa no metrô. Os vagões pararam de
funcionar por conta da forte chuva. Dizia que a informação era de que algumas
galerias também estavam alagadas.
Ele ficou sinceramente preocupado, pois em temporais como aquele,
era comum a queda de energia em locais públicos, mesmo os que contavam com
geradores de emergência como era o caso do Metrô de São Paulo. Respondeu a
mensagem perguntando em qual estação ela estava, pois tentaria chegar até lá
com a píck-up.
Eva respondeu alguns segundos depois. Dizia para ele não se
preocupar com ela e sim com a carta, pois estava em cima do prazo para
confirmar o aceite à Sinfônica.
- Droga de mulher teimosa – resmungou ao constatar que ela não
informara em qual estação estava.
Ele enviou mais uma mensagem, perguntando onde ela estava.
O toque do celular ecoou minutos depois, anunciando a chegada de
mais uma mensagem.
“E arriscar a matar o cavalo branco afogado?” Ela perguntava.
Abaixo da frase estava o desenho de um nobre, com o cavalo branco atolado em
uma poça de lama.
Theo riu alto ao identificar imediatamente a indireta recebida.
Trocaram mais algumas mensagens buscando alternativas para o
problema.
Eva sugeriu receber o documento por e-mail, o que não o agradava
em nada. Aquele era um documento para ser entregue em mãos, sem riscos de
extravios ou ser danificado por vírus de computador.
Após mais algumas mensagens, ele cedeu e informou que poderia
digitalizar o documento em sua casa mesmo e enviar para ela, dentro de alguns
minutos.
Momentos depois, recebeu a mensagem na qual Eva informava seu e-mail.
Ele arquivou a informação em uma das pastas de seu celular e
seguiu para casa.
Ao virar a pick-up na rua onde morava, avistou um veículo familiar
parado em frente a sua casa.
Bas e sua inconfundível Pajero negra.
- Está perdido? – Saudou Sebastian que se protegia da chuva dentro
de seu utilitário preto.
- Alagado seria uma melhor definição – Bas gritou de dentro do
carro. – Minha rua está debaixo d´água. A porra da garagem subterrânea esta
alagada.
Theo fez um careta de desagrado ao imaginar o prejuízo dos
moradores e então recordou da moto monstro de Sebastian. O veículo
conceito, feito por encomenda era a menina dos olhos do homem com cara de
poucos amigos.
- Não pergunta sobre a moto – Bas grunhiu.
Theo fez um sinal para que o amigo o seguisse e abriu o portão de
acesso a garagem.
- Eu trouxe o jantar – Bas anunciou carregado com duas caixas de
pizza e meia dúzia de cervejas, ao entrar na casa.
- Isso ainda vai te matar – Theo ironizou ao ver as duas caixas de
pizza. Divertido por constatar, que pelo menos o menu escolhido para noite
seria mantido.
- Isso é uma iguaria italiana – Bas resmungou indo em direção à
cozinha.
Theo seguiu para o escritório, determinado a cumprir sua missão
antes do jantar.
Minutos depois, enviou o documento para o e-mail informado por Eva
e mandou uma mensagem de texto informando o envio.
Esperou alguns minutos por uma resposta que não veio.
Meia hora mais tarde, Bas entrou no escritório com a forma de
pizza e duas cervejas e encontrou Theo teclando uma nova mensagem de texto.
- Algum problema? – perguntou ao depositar a forma com a pizza
fumegante sobe a mesa do escritório e estender uma garrafa em direção ao amigo.
Theo pegou a garrafa oferecida e em rápidas palavras explicou o
que estava acontecendo.
- Cara, se não sabemos em qual estação ela está, só nos resta
esperar – ponderou, ocultando sua própria preocupação, com uma mulher que
conhecia somente através dos comentários do amigo.
- Ela nunca demorou tanto para responder – Theo comentou,
consultando a tela do celular.
- Percebe que fala dela como se a conhecesse há anos? – Bas
provocou para quebrar a tensão. – Isso é tão estranho quanto sua fixação pela
tal mulher misteriosa do metrô.
- Vá à merda! – Theo ralhou tomando um gole de cerveja.
- Já estou nela meu amigo – Bas comentou indiferente ao sentar em
umas das poltronas do escritório.
Theo sorriu solidário ao entender sobre qual assunto o amigo se
referia. A moto fora somente a cereja do bolo. O cara estava um desastre e tudo
porque deixou seu pau pensar por ele. Uma mulher, por mais gostosa que fosse,
não merecia a sanidade de um cara, pensou, distraído por um momento, da mulher
que não respondia as suas mensagens de texto.
- Ás merdas nossas de cada dia! – Theo disse ao erguer a garrafa
de cerveja em um brinde à amizade que os unia desde a adolescência.
- Às merdas! – Bas respondeu e tomou mais um gole da sua garrafa.
No decorrer das horas seguintes, Theo enviou mais três mensagens e
não recebeu nenhuma resposta.
Ele esperou no escritório, tendo a companhia de Bas.
Comeram as pizzas, beberam as cervejas, assistiram TV e por fim,
decidiram jogar uma partida de xadrez, que era interrompida a cada dez minutos,
para Theo conferir seus e-mails e mensagens recebidas no celular.
Às três e quinze da madrugada, o som de alerta de recebimento de
e-mail tocou.
Theo abandonou o jogo de xadrez para checar o e-mail recebido e
respirou aliviado ao enxergar o nome de Eva em sua caixa de entrada.
Ao ler o conteúdo do email descobriu o porquê ela não respondera
suas mensagens de texto. Do jeito único de narrar os fatos, ela contava ter
sido assaltada ainda quando estava na estação do metrô. De uma maneira hilária
contou como negociou com o bandido para deixá-la com os documentos. E
como após chegar ao prédio, pediu ajuda ao porteiro da noite, para arrombar seu
próprio apartamento, uma vez que as chaves estavam na bolsa roubada. O elegante
e bem humorado texto, ganhou um tom de despedida, quando ela agradeceu o
empenho, compreensão, gentileza e paciência que ele tivera com ela nos últimos dias.
Terminou a leitura com uma inexplicável sensação de perda em seu
peito. Habituara-se a receber os textos inteligentes e bem humorados da
musicista que partia para fazer história. Respondeu o e-mail, desejando a ela
todo o sucesso do mundo e clicou em enviar.
- Adeus Eva Martins – lamentou em voz alta, esquecido da presença
de Bas.
Ainda lamentava os inúmeros imprevistos que impediram que
conhecesse pessoalmente, uma pessoa tão interessante e brilhante quanto ela,
quando uma nova garrafa de cerveja foi colocada à sua frente.
- À Eva Martins e sua incrível carreira! – Dessa vez foi Bas a
fazer o brinde.
- À Eva Martins! – Theo respondeu e tomou um gole da
cerveja.
********
Após um longo e terapêutico banho e com uma xícara de chocolate
quente em suas mãos, Eva contemplava, através da janela de seu quarto, a
chuva que continuava a cair incessantemente. A beleza melancólica de uma noite
chuvosa, sempre a encantava.
Mesmo em uma noite turbulenta como aquela, na qual ficara presa em
uma estação do metrô, fora assaltada por um rapaz que não parecia ter
mais de quatorze anos, enfrentara um chá de cadeira na delegacia para prestar
queixa e arrombara a porta do próprio apartamento.
Ao entrar no apartamento, depois de arrombar a porta com a
ajuda do porteiro da noite, os infortúnios pareciam terminados, pelo menos por
aquela noite, pensou com ironia divertida, apesar do cansaço.
Sua primeira atitude ao entrar em casa, após agradecer ao
funcionário do prédio, foi ligar o notebook. Quando enxergou o nome de Theo
Santini em sua caixa de entrada, quase chorou de alívio. Antes mesmo de
tomar banho, ou providenciar algo para bloquear a porta danificada, entrou no
site da Sinfônica e com os dados informados na carta digitalizada, confirmou o
contrato de um ano. Antes do banho, mandou uma mensagem de agradecimento ao
homem que salvara seu futuro.
Os lábios se curvaram num sorriso, ao recordar o alívio e gratidão
que sentiu ao ler o bilhete deixado por ele no conservatório. O homem fora um
verdadeiro anjo da guarda ao compreender a importância do documento.
O fato de estar totalmente sem voz até dois dias atrás, fora o
ingrediente cômico de toda a comunição entre eles.
- O homem deve pensar que sou maluca – sussurrou divertida ao
recordar de algumas mensagens trocadas.
Gostaria de tê-lo conhecido, ele parecia ser um homem bem
humorado, trabalhador e ligado à família, pensou ao recordar a emergência
com o sobrinho.
Sem prévio aviso, ou ter sido solicitado, a imagem do homem de
olhos cor do céu em uma tarde de verão irrompeu em sua mente.
Eva fechou os olhos e suspirou deliciada ao recordar a sensação
arrebatadora que experimentou, quando os braços firmes, mesmo que por breves
instantes, cercaram o seu corpo.
Quem era aquele homem? E o porquê dessa reação tão devastadora?
Perguntou-se e mais uma vez, não encontrou uma resposta.
Ela suspirou e observou as gotas de chuva, escorrem por sua
janela, criando desenhos intricados. Ao se virar para ir em direção à cama,
seus olhos captaram o aviso de entrada de mensagem em sua caixa de e-mail.
Não era possível que Theo estivesse esperando sua mensagem de
resposta, era?
Mais curiosa do que crédula, se aproximou do notebook.
- Oh meu Deus! – exclamou ao ler o nome dele em sua caixa de
entrada.
Com um clique, abriu o e-mail e leu a mensagem.
No inicio ele meio que resmungava pelo que ele chamou de espírito
audacioso dela, ao tentar negociar com um ladrão e por ter arrombado a própria
porta. Salientava que teria sido mais seguro e sensato, ela ter ido para a casa
de um amigo ou parente.
- E ouvir Laura resmungar com ela a noite toda? Jamais! – disse a
si mesma, cativada pela preocupação dele.
As linhas seguintes eram de despedida, assim como foram as suas.
Ele desejava a ela todo o sucesso do mundo e que essa temporada em Londres,
rendesse muitos frutos. Terminou prometendo que um dia teria o privilégio de
assistir a uma de suas apresentações.
- Adeus Theo Santini – Eva sussurrou para tela do computador.
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