sábado, 4 de julho de 2015

Série Santuário 3.5 - Prefácio de um amor - Capítulo 06


Capítulo 6


Senhoras do Santuário,

Minhas amorosas saudações!

Em primeiro lugar, quero pedir um milhão de desculpas pelo atraso gigantesco na postagem do capítulo. Como já mencionei antes o lançamento o livro Meu Destino é Você na Amazon e a divulgação, comprometeram meu tempo, muito mais do que eu imaginava.

Prometo fazer o máximo daqui em diante, para que o fato não volte a se repetir. Obrigada pelo carinho e compreensão de cada uma de vocês.

Vocês são demais!  ;) :-* 

Apesar de saber que é um pouquinho chato (eu sei que é muito), aconselho a relerem o capítulo 5, para entenderem melhor a sequência de acontecimentos.

Mas também trago boas notícias!

Isadora e Kiron falaram tanto, que o capítulo ficou gigante, então está dividido em dois, ou seja, hoje tem capítulo em dobro, o 6 e o 7!!!!!!!

Como já perceberam Prefácio de um amor, deixou de ser um conto e passou a ser um livro. Não será tão extenso quanto Em Teus Braços, ou Meu Destino é Você, mas Kiron e Dora surpreenderam essa autora, e decidiram contar, da maneira deles, essa história de amor!

A história está como madura no Wattpad, sendo assim, conto com a ajuda de vocês para divulgar  a história. Desde já agradeço o carinho.

Sem mais demora, com vocês, o capítulo 6, de Prefácio de um amor.

**************

Duas horas e meia mais tarde...
  
– Chegamos, Isadora, sua família a espera – Kiron, já do lado de fora do automóvel, anunciou ao abrir a porta do passageiro e estender a mão em direção à bailarina.

Isadora respirou profundamente e seu olfato foi invadido pelos aromas característicos da mata nativa. Folhas, árvores, orvalho, seiva e os suaves perfumes das variadas espécies de vegetação.

“Que lugar é esse?” – ela se perguntava ao aceitar a ajuda do agente de segurança, para descer do veículo.

A temperatura amena e úmida tocou sua pele, em uma carícia bem-vinda, e imediatamente os sons noturnos da floresta alcançaram seus ouvidos. Notara que o agente de segurança desligara os faróis e reduzira drasticamente a velocidade alguns metros antes da entrada da propriedade. A chegada deles fora discreta e silenciosa, e ela desconfiava ser alguma espécie de procedimento padrão.

Cada centímetro de seu corpo doía. Há duas horas, sua cabeça começara a latejar.  O braço, no qual o bandido segurara com um aperto esmagador, estava arroxeado e inchado. Além do joelho e do outro braço, a lateral do seu tronco também ardia, mostrando que, na queda, ela se machucara um pouco mais do que imaginara. 

Porém, sentir o toque da mão levemente áspera do agente de segurança, teve o poder de eclipsar o mal-estar físico. O leve contato incendiou seu corpo ainda sensível pelas lembranças das carícias trocadas horas antes. O corpo se rebelava contra o bom senso e implorava pela proximidade, toque e beijos do homem que ainda segurava sua mão.

Isadora percorreu com os olhos o espaço à sua volta. A tênue iluminação mostrava muito pouco do lugar cercado por árvores enormes e arbustos menores. Enxergou um rio a alguns metros, e à sua frente, uma charmosa e rústica construção.

A casa térrea possuía uma varanda que contornava toda sua extensão, o telhado alongado e as janelas davam um ar despretensioso à casa construída para parecer um chalé.

Os olhos atentos perceberam as câmeras de segurança, discreta e estrategicamente instaladas. O instinto a alertou que aquelas não eram as únicas medidas para garantir a segurança da propriedade.

As divagações sobre a segurança da casa foram esquecidas quando sentiu Dante soltar sua mão. Dora encarou os olhos verdes acinzentados que a miravam sérios, quase reverentes. Ela entendeu que aquele era o momento da despedida. A missão do agente de segurança chegara ao fim.

Sorriu para o homem que a fascinava e encantava, desejando tê-lo conhecido em outro momento de sua vida.

– Obrigada, Dante, por estar lá e por me tirar de lá em segurança – disse sincera.

“Experimentar o sabor dessa mulher, fora um erro...” – o soldado disse para si mesmo.

“Saber que a pele de Isadora era macia e quente, a maneira como o perfume de orquídeas selvagens se intensificava quando ela estava excitada, o quão delicioso e inebriante era o sabor de sua boca, somente aumentara sua fome e sua frustração” – resmungou em silêncio.

Kiron sentiu ira crua e feroz rugir em seu interior ao contemplar os ferimentos de Isadora. Os olhos pararam sobre o braço marcado e ferido pelo agarre do capanga do traficante.

– Não tão segura assim – Kiron respondeu e acariciou o braço arroxeado. – Queria poder matar o desgraçado – comentou mirando os olhos cor de ônix.

“Tocar Isadora era experimentar o paraíso e o inferno em mesma medida” – Kiron pensou atordoado pela intensa atração que o fazia desejar arrastá-la de volta ao carro e possuir o corpo pequeno, curvilíneo e tonificado pelo ballet.

A ferocidade na voz do agente de segurança fez o coração da bailarina vibrar.

– Nós dois sabemos que esses ferimentos não são nada – Isadora respirou fundo antes de continuar –, se você não estivesse lá, a essa hora, eu estaria implorando para aquele monstro,  que me deixasse morrer – retrucou e sentiu um calafrio de puro terror percorrer seu corpo.

“Merda!” – ela praguejou em silêncio.

“Ela era uma mulher forte, mas imaginar o quanto estaria sofrendo nas mãos do traficante sádico e psicopata, aterrorizava-a” – confessou para si mesma.

“Yáónoma tu thée!” – Kiron resmungou em silêncio ao notar o quanto Isadora se esforçava para se mostrar forte.

Desejou trazê-la para os seus braços e garantir que o filho da puta nunca chegaria perto dela, mas não podia fazê-lo. Estavam cercados por câmeras, vigiados em um ângulo de trezentos e sessenta graus, sabe-se lá por quantas pessoas.

“Foda-se!” – Kiron praguejou.

“Tocaria e beijaria Isadora uma última vez, e que todo resto fosse ao inferno!” – decidiu.

Erguia a mão para acariciar a face cor de café frappé quando a porta da casa, chamada de Santuário, fora aberta e os três homens Baptista marcharam em direção da bailarina e a envolveram em um íntimo e amoroso abraço.

Não era preciso tradução para entender as emoções contidas naquele abraço. Presenciara alguns nos anos em que integrava a equipe 3 do esquadrão.

Kiron olhou em direção da casa e enxergou Álvaro Nascimento parado à varanda da casa. A presença do líder do esquadrão não o surpreendeu, afinal, Isadora era filha do Major Baptista. Ao lado de Álvaro, já trajando o horrível uniforme branco e com os cabelos cor de cobre recolhidos no severo coque, Ângela o encarava com uma expressão furiosa na face.

“A enfermeira não o perdoaria por mentir para ela” – ele constatou. “Na verdade, Angie o perdoaria nas próximas horas, mas fingiria por meses, somente para torturá-lo” – pensou com carinho fraternal.

Kiron conhecia poucas pessoas com o coração gigante, como o de Ângela Garlipe.

Com um aceno de cabeça, seguiu em direção à varanda. Após a conversa com o líder do esquadrão, seguiria seu caminho para longe de Isadora Baptista, a maior tentação com a qual já se deparara em sua vida.

*******

Dora levaria para sempre em sua memória o momento em que, ainda do lado de fora da casa, quase fora esmagada pelo abraço dos três homens mais importantes da sua vida. Por um momento se permitiu ser frágil e se agarrou ao pai e aos irmãos. Ficaram abraçados por longos minutos, sem que palavras fossem necessárias. Os toques, os cheiros e o aconchego familiar reconfortaram seu coração, restauraram suas forças e alimentaram sua rebeldia.

Quando o pai ao afrouxar o abraço, informara que Angie viera com eles, Dora sentiu o coração alagado de gratidão. Porém, quando no instante seguinte, o pai sugerira que deveria cuidar dos ferimentos, descansar e conversarem na manhã seguinte, a determinação e teimosia, que faziam dela uma autêntica Baptista, falara mais forte.

Do alto de seus um metro e cinquenta e cinco de altura, protestara com veemência.

Ela queria respostas! Dissera encarando os homens de sua família, e as exigia naquele momento. Qualquer outra necessidade, banho, curativos, alimento e repouso seriam saciados somente após esclarecer todas as dúvidas e suspeitas que invadiram sua mente nas mais de duas horas e meia que passara deitada no banco de trás do automóvel, conduzido pelo agente de segurança que desaparecera durante seu reencontro com a família.

Apesar de contrariados, seu pai, Davi e Luiz acataram sua decisão.  Após receber um longo e apertado abraço de Angie, cumprimentar Álvaro Nascimento e agradecer a intervenção de seus agentes de segurança, o presidente da Abaré os conduziu, ela e sua família, através do interior da casa até o cômodo que, na verdade, se revelara uma sala de reuniões surpreendentemente equipada.

Uma longa mesa com dez confortáveis cadeiras preenchia quase todo o espaço. Em uma das paredes, um sofisticado sistema de som, com caixas de som embutidas, ladeava uma tela de mais ou menos cinquenta polegadas. No centro da mesa, um aparelho que não parecia ligado a nada, no qual se viam LEDS verdes e azuis, piscava em uma sequência cadenciada. A curiosidade quase a fazia se abaixar para ver por onde passavam os fios do pequeno aparelho, que ela intuía ser usado para conexão de dados.

A sala de reuniões tinha a mesma decoração espartana das salas de estar e jantar pela quais passara ao entrar na casa. Existiam os móveis necessários a cada espaço e nada mais. Nenhum quadro, objeto de decoração ou plantas.

Dora compreendeu que estava em uma “casa de passagem”. Um lugar para onde pessoas que estavam passando pela mesma situação que ela, eram levadas para se esconderem de quem ameaçava suas vidas.

Contemplou os três homens à sua frente. O pai sentara na cabeceira da mesa. Luiz sentara à sua direita e Davi estava de pé, com a familiar postura de comando que intimidava os soldados sob seu comando.

“Não sou um soldado!” – Dora pensou em silencioso desafio.

Ela estreitou os olhos ao perceber que eles não pareciam se sentir culpados, sequer estavam constrangidos.

– Irei facilitar as coisas – Isadora anunciou encarando o pai e os irmãos. – Desde quando estou sendo vigiada, e por quê? – perguntou determinada a descobrir a verdade.

“Essa era a única explicação plausível para ainda estar viva!” – pensou entre agradecida e contrariada.

O silêncio que se instalara na sala desde que Álvaro Nascimento os deixara sozinhos, tornou-se incômodo.

Os três homens trocaram olhares entre si e em seguida a encararam sérios, intensos.

Isadora não desviou seu olhar ou recuou diante da testosterona e autoridade que vibravam no ambiente.

“Aqueles homens protetores, arrogantes e autoritários eram a sua família” – pensou orgulhosa.

– Então? – ela cobrou uma resposta antes que seu coração se abrandasse e os perdoasse, sem ao menos conhecer a verdade.

– Nós também temos perguntas, Dora – o pai rompeu o silêncio.

O tom de voz do major era frio e controlado, mas Dora enxergava as emoções que brilhavam nos olhos negros. Eram muitas, entre elas identificou decepção.
“Decepcionara seu pai” – Dora constatou com o coração dolorido.

 – A primeira é: por que não contou para sua família que estava trabalhando com crianças vítimas de abuso? – perguntou com o timbre de voz levemente alterado. – Como pôde frequentar lugares tão perigosos sem se preocupar com sua segurança? – questionou a filha mais jovem.

Dora tentou ignorar a recriminação que o pai já não tentava disfarçar.

Ela respirou profundamente antes de responder.

– Aquelas crianças precisavam de ajuda – disse comovida pela lembrança de sua primeira visita ao abrigo –, um tipo de ajuda que vai além do que médicos e psicólogos podem conseguir. A música e a dança são instrumentos que as ajudam no difícil caminho para reencontrarem a si mesmas, fazerem as pazes com seus corpos, mentes e almas, tão feridos e torturados.

Isadora fez uma pausa, mirou um ponto qualquer da sala e em seguida voltou a encarar seu pai.

– Não contei porque vocês não me deixariam em paz enquanto eu não desistisse, e eu não posso desistir dessas crianças... – Davi a interrompeu.

– Alguma vez pensou em sua segurança? No quanto aquele bairro é perigoso? – o irmão mais velho perguntou exasperado. – Por acaso sabe qual é o índice de criminalidade daquele lugar? – questionou à irmã mais nova.

– Foi exatamente por isso que não contei nada a vocês! – Dora respondeu tão irritada quanto o irmão mais velho. – Sabia que tentariam me aterrorizar! – protestou. –Me fariam desistir em nome da minha segurança e...– mais uma vez o irmão mais velho a interrompeu.

– E onde estamos agora, Dora? – Davi perguntou. – O traficante mais procurado do estado colocou sua cabeça a prêmio! – Ele sentiu um buraco se abrir em seu estômago ao pensar na hipótese de que o filho da puta conseguisse sequestrar sua irmã. – O que mais precisa acontecer para você nos dar razão? – perguntou quase gritando.

Dora encarou o irmão mais velho. As palavras de Davi soaram como um doloroso e estridente tapa em sua face.

A bailarina ergueu o queixo e encarou o coronel Davi Baptista.

– E isso nos leva a outra pergunta – a voz ponderada e tranquila de Luiz Baptista se fez ouvir na sala de reuniões. – Por que não nos contou o que estava acontecendo? Por que não nos pediu ajuda? – o irmão do meio inqueriu.

Dora encarou o homem que nunca perdia o controle e, sem saber o porquê, se perguntou se a mulher do irmão, alguma vez, conseguira roubar todo aquele controle e serenidade do tenente-coronel Luiz Baptista.

Dora expirou e sentiu a cabeça latejar com mais intensidade.

– Cresci ouvindo os três repetirem incansavelmente que as forças armadas são responsáveis por guardar nossas divisas, nos defender de invasões e lutar para defender nossa soberania. Não cabia à Marinha, Exército ou Aeronáutica a investigação de crimes e delitos ou o patrulhamento de ruas e bairros. Salvo em situações de extrema necessidade. Proteger o cidadão em sua rotina cotidiana é um dever das polícias Civil e Militar.  – Dora repetiu o discurso que ouvira inúmeras vezes dos irmãos e do pai.

– E decidiu aprender isso justamente na única situação em que não hesitaríamos em ajudar? – Luiz perguntou em tom repleto de ironia divertida.

Antes que percebesse, Dora sorria com as lembranças dos acontecimentos que sempre antecediam os sermões sobre a hierarquia militar.

Quando criança, não compreendia a diferença entre um policial e um soldado.  Sempre cobrava do pai e depois dos irmãos, o policiamento da rua, que combatessem o crime e defendessem as crianças perseguidas pelos alunos mais velhos da escola. Em sua inocência, os enxergava como super-heróis da vida real. E se o super-homem não escolhia a quem defender, por que seu pai escolhia?

“Davi, que era dez anos mais velho, e entrara para o exército quando ela estava com oito anos, fora o que mais sofrera com suas cobranças” – recordou divertida.

Dora mirou novamente o irmão mais velho.

– Tomei todo cuidado do mundo. Fiz a denúncia para a Polícia Federal, e procurei um policial de reputação ilibada – esclareceu –, e somente relatei os fatos após ter todas as garantias da confidencialidade do meu depoimento e de quais seriam as medidas que garantiriam a segurança das meninas resgatadas daquele inferno. Não fui ingênua nem irresponsável! – enfatizou.

“Detestava a sensação de estar no banco dos réus” – pensou exasperada.

O pai se levantou, caminhou em sua direção e parou diante dela, sem esconder o quão contrariado e decepcionado estava.

– O que achou que estava fazendo, quando escondeu todos esses fatos da sua família? – o pai perguntou mirando os olhos negros que eram a réplica dos seus.

– Sendo uma Baptista! – Dora respondeu sem hesitar.

– Desde quando mentimos, Dora? – o pai questionou irritado.

– Não mentimos, pai, nós omitimos! – ela retorquiu. – Nunca sabemos onde vocês estão, para qual país estão partindo ou quando retornarão para casa! Convivo com segredos e omissões desde que consigo me lembrar. Foram mudanças feitas às pressas em plena madrugada. Dormíamos em um país e acordávamos em outro. Ausências que nunca eram justificadas, e meses sem ao menos ouvirmos a voz de um de vocês.

– Somos soldados! – o pai quase gritou. – Esse é o nosso trabalho. Servimos ao nosso país e protegemos as pessoas.

– Eu também sirvo ao meu país e ajudo as pessoas! – ela respondeu. – Não me arrependo de nada! – declarou encarando os três homens. – Faria tudo novamente! O trabalho, a denúncia, tudo! Mesmo tendo passado por esse horror, sem saber exatamente onde estou, ou se daqui a vinte e quatro horas estarei viva, eu não mudaria nada!

A respiração levemente ofegante era sinal de seu estado de espírito.

“Meu Deus! O que acontecia com sua família?” – perguntava-se. Não discutia com seu pai desde os dezesseis anos!

– É diferente, Dora!

– Diferente por quê? Por que sou uma bailarina? Por que sou mulher?

– Porque expôs as pessoas que tanto tentando proteger! – o major gritou a revelação.

Um ensurdecedor silêncio tomou conta da sala de reunião.

Dora sentiu como se seu coração parasse de bater. Atordoada, procurou os irmãos com o olhar e as expressões de lamento de ambos quase a fizeram cambalear.

– O que o senhor disse? – perguntou em um quase sussurro.

– Dora, eu acho melhor você sentar! – Davi pediu em uma voz branda que a alarmou ainda mais.

– Estou bem de pé! – respondeu sem tirar os olhos do pai. – O que aconteceu? – perguntou sentindo como se seu coração estivesse sendo esmagado.

– Há dez dias, a Polícia Federal, depois de transferir as meninas para novos abrigos, retirou os policiais que guardavam o primeiro, para o qual as crianças foram levadas – o major fez uma pausa ao notar a palidez na face da filha mais nova.

– Eles fizeram o quê? – Dora perguntou alarmada. – Eles prometeram que o abrigo estaria seguro.

O coração, naquele momento, batia descontroladamente.
– A Polícia Federal acreditou que não havia risco, pois as jovens já não estavam lá – Luiz esclareceu ao também se levantar.

Dora sentia o peito dolorido, com fúria, indignação, culpa e preocupação, ao ouvir o irmão narrar os acontecimentos posteriores à retirada dos policiais que guardavam o abrigo. Três dias após o abrigo ser abandonado à própria sorte, capangas, do monstro que ela denunciara, invadiram e destruíram a instituição. Móveis, utensílios, louças, roupas, tudo fora destruído pelos marginais.

Horrorizada, ouvia o irmão relevar a extensão das barbaridades cometidas. Atordoada, descobria que durante a ação, os desgraçados feriram várias crianças e funcionários do abrigo.

Após muita hesitação, Luiz revelara que os bandidos, ao deixarem o abrigo, tentaram levar três meninas com eles, mas a chegada da policia militar, que fora chamada pelos vizinhos, frustrara a ação dos marginais.

– Por que não me deixaram atirar naqueles desgraçados?! – Dora gritou revoltada com a barbárie promovida pelos capangas do monstro.

O coração estava destroçado ao imaginar o pavor ao quais as crianças e funcionários da instituição foram submetidos.

Dora se afastou dos homens de sua família e foi para o outro extremo da sala. Sentia-se nervosa e angustiada.
“Precisava fazer alguma coisa” – pensava ao mesmo tempo em que a mente era invadida por lembranças do trabalho com aquelas meninas.

Recordou o choque e o horror quando descobrira sobre as jovens que eram entregues pelos próprios pais ao traficante pedófilo e sádico, a denúncia e a sensação de alivio quando as meninas concordaram em fugir e denunciar o monstro filho da puta!

De repente sentia-se sufocada, era como se a sala diminuísse a cada segundo. Seguiu em direção à porta, estava com a mão na maçaneta quando a voz de Davi a alcançou.

– Foi por causa desse ataque, que descobrimos o que estava acontecendo, Dora – o irmão revelou em uma voz mais branda. – Conheço o policial que lidera essa investigação. Ao tomar conhecimento sobre o que aconteceu ao abrigo, ele me procurou.

Dora se virou lentamente e encarou o irmão.

– Quando? – perguntou. – Há quanto dias sabiam desse ataque e não me disseram nada? – questionou.

– Dora, esse policial ignorou a lei e a ética, e me procurou como um amigo – Davi fez uma pausa –, ele me procurou na mesma tarde do atentado ao abrigo, há sete dias – revelou.

– Davi... – Dora não conseguiu continuar.

– Precisávamos manter você em segurança e entender o que estava acontecendo – ponderou – não sabíamos sobre seu trabalho, sobre as meninas e as denúncias.

A voz do major, segura e forte, voltou a soar.

– Desde essa mesma tarde, está sendo protegida e monitorada – o pai revelou.

– Como? – Dora perguntou estarrecida.

“Como não percebera” – perguntava-se ainda mais chocada.

– Há sete dias, os agentes de segurança da Abaré garantem a segurança de cada passo seu – o major declarou.

– Me diz que conseguiram prender esse homem, por favor! – a voz da bailarina era quase uma súplica.

O mal-estar que sentia ao descer do carro, minutos atrás, piorava a cada minuto.  Não sabia como conseguia se manter de pé.

– As únicas coisas que precisa saber é que, em vez de passar férias em Florianópolis, como havia planejado, será escoltada até a cidade de Baía Bonita no Rio Grande do Norte – Davi e Luiz interromperam o pai.

“Para onde?” – a bailarina se questionou cada vez mais atordoada.

– Pai – a voz de Davi era um misto de alerta e reprovação.

– Concordamos em conversar com ela com calma – a voz de Luiz tinha o mesmo tom reprovador do irmão mais velho.

O Major Baptista não tirou os olhos da filha mais jovem.

– E de lá, irá para os Estados Unidos, para integrar o American Ballet Theatre por quinze meses. O prazo máximo do contrato que ofereceram à você – ordenou com a autoridade que os homens sob seu comando não ousavam questionar.

Ao ouvir as palavras pronunciadas em tom de ordem, Dora mais uma vez ofegou. Completamente estarrecida, com os olhos muito abertos, a pulsação retumbando em suas têmporas, mirava o rosto do pai. Não ouviu os resmungos contrariados dos irmãos.

“Não contara à família sobre as audições que participara há quase dois anos, com a ilusão de que poderia disputar de igual para igual a vaga de bailarina solista” – pensou estarrecida.

“Também não contara que muitos meses depois fora selecionada para membro do corpo do ballet. Não como solista, mas como parte do corpo secundário” – recordou a conversa que tivera por telefone com o diretor do elenco da companhia.

Nesses quase dois anos, seus planos e sonhos mudaram, e suas prioridades também. Não respondera a convocação. Não desejava sair do país, muito menos fugir.

– Sou maior de idade, o senhor não pode me obrigar a deixar o país! – respondeu indignada.

– Você não tem escolha, Isadora! – o pai respondeu no mesmo tom de voz.

– Não irei fugir e me esconder! – ela retrucou ainda mais indignada. – Eu não sou uma criminosa procurada pela polícia! – gritou.

Os olhos queimavam de fúria, a respiração ofegante pela adrenalina. Enquanto falava, movia-se sem parar pela sala e gesticulava com as mãos.

– Não há discussão sobre esse assunto! – o pai retrucou.

– Não vou fugir, pai! – gritou novamente. – Prefiro morrer a viver com medo da minha própria sombra! Recuso-me a viver com medo! Não seria digna do meu sobrenome se aceitasse viver assim!

Mais uma vez, um silêncio escandaloso e ensurdecedor reverberou no cômodo.

Dora olhou para os irmãos e enxergou orgulho e compreensão em seus olhos. Contemplou novamente os olhos do pai e não conseguiu definir os sentimentos que ardiam nos olhos escuros.

– Você não falhou apenas com aquelas crianças – o pai declarou, e os filhos mais velhos tentaram interrompê-los, porém, com um sinal, o major os silenciou –, falhou com sua família também.

Dora sentiu um calafrio de terror percorrer seu corpo.
– Do que o senhor está falando? – perguntou em uma voz apavorada.

O pai mantinha o olhar imperscrutável preso ao dela.

– Precisamos de tempo para arrumar toda essa bagunça – anunciou. – Esse homem sabe quem nós somos, onde suas cunhadas trabalham e os colégios onde seus sobrinhos estudam – declarou.

– Não... – Dora murmurou enquanto recuava, até que suas costas bateram contra a parede.

– Se não consegue destruir o inimigo, destrua o que ele mais ama, e conseguirá destruí-lo – o major declarou encarando filha mais nova.

Dora sentiu o chão desaparecer sob seus pés.

– Por favor – suplicou –, me diz que eles estão bem, que esses monstros não tocaram neles – pediu desesperada.

Dora se sentia ainda mais perdida e confusa a cada minuto. A mãe e as cunhadas estiveram no Municipal e não pareciam perturbadas ou preocupadas. Estavam sorridentes e alegres.

– Estão todos bem, Dora – Davi informou. – Esses desgraçados não ousaram se aproximar de nossas famílias.

– Elas sabem? – Dora perguntou ao irmão.

Davi balançou a cabeça em um sinal afirmativo.

“E como conseguiram disfarçar tão bem?” – Dora se perguntou.

A cabeça latejava com uma intensidade torturante.

 – Elas são mulheres de militares – seu pai respondeu a pergunta que ela não fizera em voz alta. – Sua mãe, cunhadas e sobrinhos estão sendo escoltados nesse momento para novos endereços, onde permanecerão até essa confusão estar resolvida – anunciou.

– Meu Deus... – a bailarina sussurrou sentindo o coração se romper em muitos pedaços.

Dora sentiu como se a temperatura da sala tivesse despencado. Sentia frio, muito frio, mas, estranhamente, o frio parecia vir de dentro dela.

– Esteja pronta para partir às nove horas da manhã – o major avisou.

O pai a contemplou por alguns segundos e depois seguiu em direção da porta. Segurou a maçaneta e antes de abri-la, olhou, encarou a filha mais nova uma última vez antes de deixar o cômodo.

Dora deixava transparecer todas as suas emoções, e naquele momento sua pequena bailarina, a menininha cheia de energia e opinião que carregara em seus braços, sentia-se desamparada e para o próprio bem dela, não poderia consolá-la.

O major mirou a porta diante dele por dois segundos... Debatia-se entre o dever com toda a família e o desejo de consolar sua caçula. Mascarando a dor que rasgava seu peito, deixou a sala de reuniões.  

Medo... Isadora experimentava o pavor em seu grau mais primitivo...

“Não temia por sua vida... Na verdade, naquele momento, sentia um enorme desejo de estar cara a cara com o violador e sádico traficante. Adoraria atirar nas bolas daquele filho de uma puta!” – pensou irada, furiosa, indignada, apavorada.

“Mas pensar na possibilidade de aquele monstro tocar alguém de sua família, a fazia experimentar um sentimento inédito para ela, o pavor!”

Quando pequena, nunca temera os monstros que se escondiam em seu armário, na verdade, eles eram seus amigos imaginários. Nunca se encolhera diante do preconceito, mas sempre o enfrentara de cabeça erguida. Nem sempre saíra vencedora das batalhas que a vida apresentara, porém nunca temera as quedas e os ferimentos.

Até aquela noite... Até descobrir que a batalha que não temera guerrear, poderia vitimar aqueles que lhe eram mais caros. As pessoas que mais amava no mundo...

– Dora – a voz de Davi soou muito próxima e somente naquele momento percebeu que o irmão acariciava seu rosto. – Pequena, sua pele está gelada – disse com uma voz preocupada.

Sentiu o coração sangrar ao imaginar o quanto Davi ficaria destroçado se algo acontecesse à sua mulher, ou aos seus filhos.

– Hora de cuidar de seus ferimentos – Angie anunciou ao entrar na sala de reunião –, e dessa vez não aceito não como resposta – declarou próxima da porta.

Dora quase se curvara de alívio e gratidão. Precisava pensar, necessitava de um pouco de solidão.

– A pele dela está gelada – David comentou ao se afastar. – Cuide bem dela, Ângela, por favor.

Angie bufou de maneira nada delicada.

– Farei um trabalho muito melhor que vocês – a enfermeira respondeu em tom repleto de ironia e desafio.

– Estarei pronta no horário determinado – Dora sussurrou e em um passo apressado deixou a sala.

Angie mirou os irmãos Baptistas, que a encaravam com expressões divertidas. Sem que palavras fossem necessárias, disseram uns aos outros o que necessitava ser dito.

Com um levo aceno de cabeça, a enfermeira seguiu ao encontro da bailarina que, ainda sem saber qual aposento ocuparia a aguardava na sala de jantar.

***********
O brilho prateado da lua cheia iluminava a mata nativa. O rio, que abraçava parte da propriedade, refletia, como em um espelho, o céu noturno, com suas luzes cor de prata. O orvalho caía invisível banhando a vegetação. A umidade tornava a brisa da madrugada, ainda mais fria.

“Perfeita para ele” – Kiron disse para si mesmo, parado diante do rio.  

A luz da lua criava uma atmosfera quase mística na área externa da casa, que os homens do esquadrão chamavam de Santuário, o quartel general da equipe 1.

“Isadora.”

Quando seu espírito de soldado exigira que ele se afastasse, algo mais forte que seu desejo, ou vontade, o fizera ficar.

“O dever” – pensou e fechou as mãos, que estavam ao lado do corpo, em punho.

Após apresentar o relatório da viagem ao líder do esquadrão, em vez de se retirar e seguir seu caminho, para longe da bailarina, flagrou-se oferecendo seus serviços para colaborar com a equipe 1 até o final da missão.

“Não conseguira se afastar da bailarina que cheirava a orquídeas selvagens, tinha um sabor que o fazia pensar em mel e vinho e possuía os olhos negros mais expressivos que conhecera” – admitiu.

“Precisava ter certeza de que ela ficaria bem” – tentou mentir para si mesmo, mas foi em vão.

O que o fizera ficar, fora o irracional desejo de estar com ela mais uma vez. O corpo exigia que tomasse o que Isadora lhe oferecera enquanto se beijavam com desespero no banco de trás do automóvel.

Thée um clamou.  “Se a bailarina não houvesse pronunciado o nome Dante, ou se o tivesse feito somente quando seu corpo estivesse enterrado profundamente no interior do dela, a essa hora ele estaria perdido!” reconheceu.

Isadora despertara os instintos primitivos até então adormecidos. Sentia uma necessidade atroz de protegê-la, garantir seu bem-estar. Desejava, com uma força descomunal, acabar com a raça dos desgraçados que ameaçavam sua vida. E morreria pela oportunidade de ser o responsável por seu prazer e o dono de seus sorrisos.

“Tudo o que não tinha o direito de cobiçar” – alertou a si mesmo.  “Isadora representava uma tentação para a qual não estava preparado” – admitiu.

Ainda contemplando o rio à sua frente e com as mãos fechadas em punho, Kiron mirou a lua cheia.
O desejo, o encanto e o fascínio eram fortes demais... Precisava reencontrar seu equilíbrio, sua sanidade...

Em sua vida e em seu trabalho não havia espaço para paixões. A passionalidade, para um soldado, era sinônimo de morte.

“Não era a toa que os gregos antigos temiam o eros” – resmungou em silêncio para si mesmo, referindo-se a uma das palavras pelas quais seu povo se referia ao amor.

Existia Ágape, o amor incondicional, Philos, o amor desinteressado, fiel, fraternal. Storgo, o amor maduro, natural. Mas era eros,  considerado o primeiro tipo de amor, que amedrontava os gregos. Nomeado por causa do deus grego da fertilidade, Eros era a paixão sexual, o desejo perigoso, ardente e irracional. Era essa perda do controle que assustara seus ancestrais.

“E ele começava a entender o porquê” confessou, mirando o brilho da lua sobre a água.





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