domingo, 10 de maio de 2015

Série Santuário 3.5 - Prefácio de um Amor - Capítulo 02


Senhoras e Senhores do Santuário!

Amorosas Saudações!

No 2º capítulo de Prefácio de Um Amor, vocês conhecerão a bailarina Isadora Baptista, a protagonista dessa história de amor! 

Como é mencionado logo no início do capítulo, regredimos cinco anos no tempo. Ou seja, os acontecimentos dos três primeiros livros ainda não haviam ocorrido (com exceção do resgate da Alicia Bittencourt, ocorrido anos antes). 

A composição da nossa mocinha é uma homenagem a várias bailarinas: 

O nome Isadora foi escolhido em homenagem a bailarina Isadora Ducan: http://lounge.obviousmag.org/por_tras_do_espelho/2013/12/o-espiritorevolucionario-de-isadora-duncan—a-bailarina-que-transformou-a-dancano-seculo-xx.html

O sobrenome Baptista foi escolhido em homenagem a Mercedes Baptista, a primeira bailarina negra, solista do Teatro Municipal do Rio de Janeiro: http://www.revistaafro.com.br/destaques/mercedes-baptista-primeirabailarina-negra-do-theatro-municipal/ 

E para o avatar foi escolhida a linda Misty Copeland, bailarina negra, solista do American Ballet Theatre: http://translate.google.com.br/translate?hl=ptPT&sl=en&u=http://www.mistycopeland.com/&prev=search 

Beijos e Boa leitura! 

Apreciem sem moderação.

****************************************************** 

"O corpo do bailarino é simplesmente a manifestação luminosa da alma."
Isadora Ducan


Cinco anos antes... A música inundava o estúdio em notas repletas de solidão e angústia. 

A grande sala com piso de madeira, paredes espelhadas e barras instaladas minuciosamente a um metro do chão testemunhava, em reverente cumplicidade, os movimentos da coreografia que narravam às emoções sombrias de uma alma devastada pela dor de um coração ferido. 

O corpo, esculpido pela dança, entregue às emoções da personagem central da história de amor contada através da leveza e intensidade do ballet. A técnica, graça e elegância do ballet clássico mescladas à liberdade de movimento do ballet contemporâneo em uma comunhão harmoniosa, densa, pungente. 

Membros trabalhando em sincronia para elaborar os intricados movimentos. A tristeza da personagem transmitida através dos passos e expressão corporal da bailarina que, em nome da arte, ignorava as dores nos pés e músculos, o cansaço e o suor que descia por seu pescoço e percorria suas costas. 

A respiração, carregada das emoções da mulher fictícia que estava prestes a morrer por amor, acompanhava o ritmo frenético das batidas de seu coração. 

Sozinha no estúdio da companhia de dança, Isadora tentava alcançar a comunhão com a dimensão e a intensidade dos sentimentos da personagem que interpretava. 

A canção mudou anunciando o fim do sofrimento da personagem que acreditava estar prestes a reencontrar a metade de sua alma. Acordes dramáticos guiavam os movimentos de uma feliz agonia. 

Apoiada na fé de que, com o fim de sua vida, sua alma reencontraria a alma de seu amado, a personagem se entrega aos braços da morte, sorrindo. 

O silêncio invadiu o estúdio. 

Somente o som da respiração acelerada da bailarina deitada sobre o piso de madeira, ecoava através do ar. 

Com os olhos fechados, Isadora inspirou e expirou várias vezes para normalizar a respiração e acalmar as batidas frenéticas de seu coração. 

- Merda! - praguejou, em um misto de frustração e exasperação. 

Um suspiro contrariado escapou de seus lábios ao mesmo tempo em que ela erguia o corpo e se sentava sobre o piso de madeira. 

A bailarina contemplou sua imagem na sala espelhada e fez uma careta de desagrado. Sua aparência, após sete horas de ensaio, não era das melhores. Parte do cabelo escapara do coque feito pela manhã. O collant mostrava pontos de umidade causados pela transpiração que também molhava seu rosto. Os músculos estavam muito doloridos dos movimentos repetitivos e os pés... 

"Era melhor nem pensar neles" - ponderou consigo mesma. 

Mais uma vez, um suspiro de frustração ressoou pela sala de dança. 

Estavam a uma semana da estreia, e ela ainda não conseguira captar a essência dos sentimentos da personagem principal e isso a angustiava... 

Há doze meses, após anos e anos de batalha por um lugar ao sol, cansara-se de ouvir que o balé clássico não tinha papéis para bailarinas negras. Que seu corpo não conduzia com o de uma bailarina clássica. Que deveria se contentar em se apresentar na última fileira ou mesmo ser realista e desistir... 

"Eles não conheciam sua teimosia" - pensou ao desamarrar o laço que prendia a sapatilha em seu tornozelo e refazê-lo. 

Decidida a mostrar que uma bailarina negra poderia sim, viver a emblemática Giselle, a Kitri de Dom Quixote ou Clara de Quebra nozes e munida de mais coragem que juízo, fora a luta. 

O espetáculo era o fruto de uma iniciativa independente e produzido por ela e mais seis profissionais do mundo da dança, em uma ousada empreitada. O corpo de ballet da apresentação contava com trinta bailarinos, entre clássicos e contemporâneos. Em uma coreografia repleta de lirismo e dramaticidade narrariam, através da dança, uma linda e trágica história de amor multirracial em tempos de guerra, adaptada de um romance da década de oitenta pelo qual ela se apaixonara. 

Aos vinte e cinco anos, Isadora era, além de produtora, coreógrafa e bailarina principal da apresentação, que seria contada em seis cenas e três atos. Ensaiavam quatro horas por dia, seis dias por semana, aperfeiçoando cada detalhe, ajustando tempo, corrigindo falhas. 

E durante a última semana, frustrada e angustiada por não conseguir se conectar à personagem que tanto a encantava, permanecera horas após o ensaio com o grupo. E amparada pela solidão, recomeçava, uma e outra vez, buscando a medida exata da emoção. Mas, apesar de todo seu esforço e dedicação, não conseguia transmitir toda a gama intensa de sentimentos e sensações da personagem que entregara o corpo, coração e alma em uma história de amor que transcendia o limite da existência humana. 

"Como seria amar assim?" - Dora perguntou ao seu reflexo no grande espelho. 

Ela não tinha a resposta. 

E por isso, não conseguia transmitir a complexidade do sentimento para sua dança. O corpo não poderia falar sobre algo que ela não compreendia ou nunca sentira. A técnica e precisão estavam presentes, mas faltava a proporção correta de amor, paixão, luxúria, dor e desespero. Cobrou mais uma vez a si mesma. 

- Faça-me sentir! - suplicou em voz alta à personagem fictícia protagonista da trágica história de amor. 

Em mais uma tentativa, Isadora fechou os olhos, inspirou profundamente e esvaziou sua mente. Concentrou-se no pulsar ritmado em suas veias, em sentir o ar que escapava de seus pulmões. Ignorou as dores, todas elas. Permitiu-se sentir a brisa fria do anoitecer que entrava pelas janelas basculantes, instaladas no alto das paredes, e tocava sua pele em uma carícia quase sensual. 

Aos poucos, sentiu o corpo conectar-se à mulher fictícia e às suas emoções. O primeiro encontro, o nascimento do sentimento mais forte que a própria vida. Os momentos de amor compartilhado com o homem que a amava com a mesma intensidade e devoção. Os obstáculos que o amor enfrentara e que os ferira em cada batalha. O desespero da perda. A dor da solidão... 

Isadora respirou fundo mais uma vez e se levantou. 

Não religou o som, não era necessário. A música vibrava em sua mente e coração. Com o peito batendo na mesma cadência da personagem, recomeçou os movimentos que narravam o momento triste e sombrio do espetáculo. 

E finalmente, após meses de ensaio, ela conseguia sentir o desespero e a solidão da mulher que aprendera a admirar e respeitar, mesmo sabendo que ela nunca existira. 

Em cada movimento, a emoção falava através dela.

Sem se dar conta, lágrimas escorriam por sua face. A dor era forte demais... 

A personagem sentiu a proximidade da morte e a abraçou e recebeu como irmã. Seu sofrimento chegava ao fim. Em breve, estaria novamente nos braços de seu amado. 

Inexplicavelmente, Isadora sentiu uma intensa sensação de paz alagar todo seu corpo.

***** 

"Ela conseguira" - Saulo pensou orgulhoso, parado junto à porta do estúdio. Fascinado, observava Dora se entregar completamente às emoções da protagonista. 

Dor, solidão, angústia, ansiedade e por fim, a paz ao entregar-se nos braços da morte. Todos as nuances de emoções e intensidades estavam lá, constatou ainda mais encantado com a aflorada sensibilidade de Dora. 

"Ela era uma parceira fantástica. Na dança e na vida" - pensou com um sorriso estampando seu rosto. - "E teimosa também" - retrucou consigo mesmo. 

Em quase dois anos de relacionamento, uma das coisas que mais admirava em Dora era sua determinação, somada a sua coragem. Isadora não era uma mulher de metades, ou que se satisfazia com "quases". Era uma mulher intensa, que se jogava inteira em tudo o que realizava. 

O ensaio terminara há pouco mais de três horas, mas a bailarina, que prometera ir para casa para se aprontar para o compromisso daquela noite, permanecera no estúdio da companhia de dança. Tinha certeza que ela perdera a noção do tempo e não fazia ideia do adiantado da hora. 

Combinaram que ele a encontraria no apartamento antes de seguirem para o jantar mensal na casa dos pais dela. Era uma tradição que a família Baptista levava muito a sério. Após tocar o interfone por vários minutos e tentar, sem sucesso, contatá-la através do celular, seguiu para o estúdio.

E lá estava ela, vivendo o momento que todo bailarino ansiava experimentar ao menos uma vez em sua vida. E o mais fascinante era saber que Dora não conseguia dançar de outra maneira. A bailarina colocava o corpo, a alma e o coração em cada movimento, cada passo, cada gesto. 

Aquela era a primeira vez que trabalhavam juntos. Reconhecia que a parceria no ballet desgastara o relacionamento deles, e antevia o que estava prestes a acontecer. Porém, mesmo com o futuro incerto da relação, não conseguia deixar de se maravilhar ao vê-la dançar. 

Não conhecia uma bailarina ou bailarino tão apaixonado por sua arte quanto à mulher que naquele momento, mesmo sem música, desnudava a alma através da dança. 

Sem tirar os olhos da bailarina, que ainda não percebera sua presença, tirou os sapatos e as meias e aguardou o momento de sua entrada. Contemplou o corpo balançar nos movimentos incertos e trôpegos da personagem, até que o corpo da bailarina atingiu o solo. 

Com os olhos fixos na mulher que deitada sobre o piso de madeira deixava a personagem que entregava sua alma falar através dela, aproximou-se. 

***** 

Isadora sentia as emoções alagarem cada centímetro de sua pele. 

Uma sensação de bem-estar e serenidade vibrava em seu peito. Conseguia experimentar a doce expectativa do reencontro ardentemente desejado por sua personagem. Sentiu os passos cadenciados ressoarem no piso de madeira e, ainda de olhos fechados, sorriu. 

"Saulo" - pensou. 

Abriu os olhos e o sorriso se ampliou ao encontrar o rosto dele próximo ao seu. 

Inclinado sobre ela, ele também sorria. Os familiares olhos castanhos miravam os seus em uma silenciosa congratulação. Ele lhe estendeu a mão em um convite mudo, para juntos concluírem a coreografia que encerrava a apresentação. 

O amado recebia a amada na vida pós-morte. O reencontro das almas dos amantes que seguiriam juntas por toda a eternidade era o ápice do espetáculo. 

Assim como a personagem, Dora aceitou o convite e juntos, no silêncio cúmplice do estúdio, executaram os passos que simbolizavam a vitória do amor sobre o preconceito, a violência e a morte. 

A sintonia entre eles na dança era perfeita. 

A coreografia representava a entrega atemporal, romântica e sensual de duas almas que, enfim, se tornava um único ser de luz. O casal protagonista encerrava sua história em um sensual abraço, com os rostos quase colados um ao outro. 

Durante alguns segundos, somente os sons das respirações entrecortadas ecoavam na sala de dança. O casal de bailarinos não ousava se mover e quebrar a magia daquele instante. 

Obstante a sobrecarga emocional que os rodeava, sensibilizando seus corpos, potencializando as sensações, após alguns segundos, Saulo deu um passo para trás afastando-se e acariciou a face morena de Dora, em gesto quase fraternal. 

- Eu consegui - ela disse sorrindo. - Eu senti - revelou sentindo o coração ressoar por todo o seu corpo. 

Finalmente conseguira a conexão que tanto ansiara nos últimos meses. E fora a experiência mais intensa que já experimentara. Sentia-se completa e realizada. 

- Eu vi - Saulo respondeu mirando os olhos negros. - Parabéns, Dora, sempre soube que conseguiria - cumprimentou sincero. 

Ele acariciou novamente a face dela, úmida pela transpiração. Para eles, o suor de horas de ensaio, repetindo incansavelmente os mesmos movimentos, vencendo dores quase insuportáveis, era o sinal sagrado do sacrifício em nome da arte. 

Nas fantasias de Isadora, esse momento seria coroado com sexo ardente e apaixonado, mas, em vez disso, Saulo se afastara, rompendo o clima de tensão sexual que os rodeara por alguns instantes. 

Bem-humorada, levantou a sobrancelha esquerda questionando o namorado. 

- Não seria esse o momento perfeito para você me beijar até me deixar sem ar? - ela o provocou, em um tom brincalhão. 

Saulo riu. 

- Pedindo com tanta meiguice... - respondeu rindo e devolvendo a provocação. 

Ele voltou a se aproximar. 

- Você é fantástica, Dora - sussurrou, os lábios a centímetros do dela. 

- Você esqueceu o irresistivelmente sexy! - ela sussurrou de volta. 

Ambos riram da colocação. 

- E incrivelmente modesta - Saulo retrucou com gracejo. 

- Cala a boca e me beija, Saulo, isso é uma ordem! - ordenou, segurando o riso, com os lábios quase colados aos dele. 

- Seu desejo, é uma ordem! - ele brincou e cobriu a boca dela com a dele. 

Isadora suspirou deliciada. 

Adorava ser beijada. Em sua opinião, beijar era a melhor parte do sexo. O encontro de duas bocas sedentas uma da outra era sublime e único. 

O beijo lento e sedutor de Saulo deveria ter acendido todas as terminações nervosas de seu corpo, fazendo-a ansiar por mais, provocar os gemidos de prazer que antes os torturavam. 

Porém, não era assim que se sentia. 

Correspondia ao beijo intenso e carnal, mas não experimentava a sensação de queimar de desejo. E percebia que ele também não. 

Há meses percebera que estavam distantes um do outro, mas creditara o afastamento à correria e preocupações com todos os detalhes que envolviam a montagem do espetáculo. 

"Mas, já não tinha tanta certeza..." - pensou. 

Secretamente, desejava experimentar o amor repleto de ansiedade e desespero de sua personagem. Queria ser amada com a mesma sofreguidão com que a mulher que representaria sobre o palco do municipal o fora. 

- Detesto ser estraga prazeres - Saulo anunciou ao fim do beijo -, mas temos menos de uma hora para chegar à casa dos seus pais - alertou. 

Isadora inspirou profundamente. 

"Não adiantava adiar o inevitável" - pensou, mirando o rosto de traços angulares do homem que a abraçava. 

- O que houve? - Saulo perguntou. - Não quer ir ao jantar? - insistiu ao perceber a mudança na face e na atitude da bailarina. 

Dora estava séria, olhava para ele com uma expressão quase solene. 

"Por que, apesar de gostarem dela, os homens não se apaixonavam por ela?" - Isadora se perguntou com o coração dolorido, apesar de saber que já não estava apaixonada por Saulo há algum tempo. 

Ela deu um passo para trás e ele a deixou sair da proteção de seus braços. 

- Dora? - Saulo insistiu. 

- Devo chegar ao jantar quando já estiverem servindo a sobremesa - ponderou -, mas dessa vez, irei sozinha - anunciou com peito esmagado, iniciando a difícil conversa. 

******** 

"Quando se é filha, irmã e cunhada de militares ser pontual não era uma opção e sim, uma obrigação". 

Isadora tentava ser pontual, e na maior parte do tempo conseguia. Mas, todas as vezes que tinha um compromisso com os exigentes Baptistas, ou seja, seus pais e irmãos, o mundo conspirava contra ela e, de uma maneira ou de outra, sempre acontecia alguma coisa para atrasá-la. 

"Você nunca experimentou a verdadeira sensação de culpa e remorso, se nunca chegou atrasado para um compromisso com a minha família!" - Ela sempre falava aos amigos e poucos namorados que tivera ao longo dos anos. 

Ao entrar na casa dos pais, com duas horas e meia de atraso, foi atacada por uma avalanche de sermões vindos de todos os lados. O pai e os irmãos, somente silenciaram quando a mãe, ao notar os olhos marejados, exigira silêncio.

A primeira reação dos homens fora olhar em direção à mulher que pedira silêncio, que por sua vez, olhara de volta para ela, os olhos da mãe gritavam a frase: olhem para ela! 

"Ninguém falava com os olhos como sua mãe" - Isadora pensara no exato momento em que todos os pares de olhos da casa se voltaram para ela. E considerando que além dos pais e dos irmãos, as cunhadas e os sobrinhos também estavam presentes... 

Bom...era como estar nua sobre o palco, com o agravante de a plateia demonstrar que não gostava do que via... 

Ao revelar o fim do romance, que durara dois anos, a família deixou as queixas de lado e a trataram como a caçula da casa. Abraços apertados, palavras de carinho, consolo e de incentivo. Tudo é claro, com um singelo e nada meigo jeito militar. 

"Os Baptistas eram os melhores" - Isadora pensou ao enxugar o prato que Davi, o irmão mais velho, lavara e entrega-lo a Luiz, o irmão do meio, que guardou a peça de porcelana no armário. 

Era mais uma das sagradas tradições da família. Após os jantares, os três irmãos eram os responsáveis por lavar os pratos e arrumar a cozinha. E apesar da linha de produção quase rígida, ela adorava esses momentos partilhados com os irmãos. 

- A gente sempre soube que ele não era o cara certo para você - Davi comentou ao ensaboar metodicamente um refratário. 

Isadora mirou o irmão mais velho. Aos trinta e cinco anos, casado e com dois filhos, o coronel Baptista, além da bem-sucedida carreira militar, era um pai amoroso e um marido apaixonado. 

- E qual é o cara certo para mim? - Perguntou, com olhos semicerrados. 

"Se ele usasse a palavra "militar", ela gritaria!" - prometeu a si mesma, exasperada. 

Não tinha nada contra militares. O ambiente militar era familiar, uma referência de segurança para ela. Mas já tinha uma overdose de homem com patentes e suas regras à sua volta. 

- Para começar - Luiz entrou na conversa -, um que não chame você de Dora! - decretou o tenente-coronel da aeronáutica. 

- O que tem de errado em me chamar de Dora? - ela perguntou. - Vocês me chamam de Dora! 

- Exato! - responderam ao mesmo tempo. 

- Vocês treinam isso, confessem! - exigiu entre divertida e contrariada. 

Os três riram. 

Davi deixou a louça de lado por um momento e encarou a irmã mais nova. 

- Nós a chamamos de Dora porque você é nossa irmã caçula e Dora é um jeito fofo de falar o seu nome - esclareceu. 

- Fofo? - Isadora perguntou contrariada. 

- E claro, é também o nome que usa como bailarina profissional - Luiz, o conciliador, observou. 

- O que isso tem a ver com o fracasso do meu relacionamento amoroso? - Isadora perguntou ao retirar outro prato do escorredor de louça. 

Luiz retirou o prato das mãos dela e a fez olhar para eles.

- Contamos para ela? - o tenente-coronel perguntou ao irmão mais velho, em tom de voz de comando que parecia estar consultando o outro homem sobre iniciar ou não a terceira guerra mundial. 

Davi coçou o queixo em exagerada ponderação sobre o assunto. 

- Ela é um dos nossos. Sempre protegemos nossos soldados - Davi respondeu extremamente sério. 

Isadora bufou e jogou o pano de prato no irmão mais velho, que o pegou no ar, rindo. 

- Agora é sério, pequena - Davi comentou -, quando um homem quer uma mulher de verdade, quando essa mulher mexe com o mundo dele, ele não usará diminutivos ou abreviará o nome dela. Quando isso acontecer com você, o sujeito vai olhar dentro dos seus olhos e pronunciar seu nome como a coisa mais saborosa que ele já provou na vida. 

- As pessoas à sua volta podem chamá-la de Isa, Dora ou simplesmente I, mas ele chamará você de Isadora, porque é assim que homens demonstram que amam. 

Literalmente boquiaberta Dora olhava para os homens altos e fortes diante dela. 

- Quem são vocês? E o que fizeram aos meus irmãos? - perguntou estupefata. 

Davi abriu o sorriso matreiro e matador que conquistara sua cunhada. 

- Nunca dirá a ninguém o que revelamos a você - exigiu. 

- Caso o contrário? - ela perguntou com as mãos na cintura, em uma atitude desafiadora. 

- Diremos que você foi a uma dessas festas liberais cheias de artistas, tomou algum alucinógeno de efeito duradouro e está obviamente delirando - Luiz respondeu em tom de velada ameaça. 

Literalmente boquiaberta, com a tão absurda quanto descabida ameaça, por um momento, tudo que Isadora conseguira fazer fora encarar os irmãos mais velhos. Instantes depois, os três explodiam em sonoras e gostosas gargalhadas. 

- Menos riso e mais trabalho! - o pai gritou da sala. 

O tom de voz divertido e repleto de carinho, não os enganara. 

- Sim senhor, senhor! - responderam ao mesmo tempo e riram novamente. 

Davi puxou a irmã caçula para o interior dos seus braços. 

- Você sempre será nossa pequena princesa! - disse carinhoso e depositou um beijo no topo da cabeça dela. 

Isadora retribuiu o carinho e puxou o irmão do meio para o abraço. 

- Também amo vocês, seus brutamontes! - fingiu resmungar. 

- Devemos dar uma surra no sujeito? - Luiz perguntou sério, acariciando os cabelos da irmã mais nova. 

- Não! - Isadora exclamou se desvencilhando dos braços dos irmãos, os encarou e continuou - Somos adultos e maduros. Conversamos e descobrimos juntos que não existia mais paixão no nosso relacionamento, somente amizade - ponderou. 

Os irmãos bufaram ao mesmo tempo. 

"Como eles conseguiam isso?" - Perguntou-se divertida. 

- E também trabalhamos juntos. Ele é o meu primeiro bailarino. Se o machucarem e ele não puder se apresentar, eu ferirei cada um de vocês, lenta e dolorosamente, estamos entendidos? 

- Sim senhora, senhora! - responderam ao mesmo tempo em que batiam continência. 

- Hum - ela resmungou. - É bom mesmo - retrucou. - Agora, que tal terminarmos de arrumar a cozinha? - perguntou imitando o tom de voz autoritário dos irmãos. 

Resmungando algo sobre o excesso de mulheres mandonas na família, os irmãos também voltaram à seus postos. 

Engolindo o riso, Isadora agradeceu em silêncio pela família que possuía, alcançou o pano de prato sobre a bancada e voltou à tarefa de enxugar os pratos.



Nenhum comentário:

Postar um comentário