sexta-feira, 5 de junho de 2015

Sr. G - Capítulo 25 - 2ª Parte



Patrícia Alencar Rochetty...


Horas viajando, após passar pela emoção de dar um beijo breve de adeus no meu mais lindo menino grande, combinado à tormenta de estar, há 45 minutos, esperando aparecer minha mala,
que parece ter resolvido dar uma volta pelo aeroporto, resumem uma Patrícia cansada e irritadíssima! Ainda tenho mais de 300 km até chegar a Ajuricaba e meu estado de espírito leva-me a algumas conclusões a respeito da impulsividade, mostrando que esta nos conduz a caminhos tortuosos... xingo-me, mentalmente, por ter pensado e agido tão precipitadamente, seguindo meu instinto incontrolável e medroso. Quando dei por mim, já tinha comprado a passagem para me levar para longe de tudo e todos! E o que foi que isto provou? Que sou uma tremenda boboca! Nunca, na minha vida, iria imaginar que desabafar com alguém a respeito dos meus demônios adormecidos poderia fazer-me tão bem! Enquanto observo a bagagem na esteira, fico meditando a respeito dos últimos acontecimentos e meus sentidos ficam à flor da pele quando algumas reflexões vêm à minha mente.

Durante todo o domingo, o Carlos foi compreensivo e um verdadeiro lorde. Seus conselhos e incentivo para eu enfrentar o que, há 23 anos, ficou adormecido, deram-me forças, ao mesmo tempo em que me confortaram. Em nenhum segundo senti-me desamparada e sozinha. Ele conversou comigo a respeito de meus medos, com naturalidade, e encorajou-me a fazer algo no sentido de fazê-los sumirem. Na teoria, tudo parece simples, porém, na prática, sei que será uma nova fase, cheia de batalhas e emoções que nunca quis vivenciar. Ele funcionou, para mim, como um antibiótico sendo aplicado no lugar da minha maior infecção: as emoções. Assim, o antídoto está agindo na minha ferida, cicatrizando, pouco a pouco, cada pedacinho da área afetada. Respiro fundo quando a minha mala preta passa pela cortina. Minhas mãos ficam trêmulas e sinto um frio na barriga, que não imaginei experimentar.

Lembro-me da última frase que ele falou, quando o beijo que me deu mal acabava de pousar sobre meus lábios.

− Comece a relembrar, desde já, os momentos que te levaram a viver livre e a ser feliz e, apesar de eu poder ir com você para segurar sua mão a cada vez que se sentir insegura, sei que isso não a fará enfrentar e enxergar que você é muito mais do que seu passado sofrido. Prove a você o quanto é especial e traga o seu irmão para conhecer o mundo que você conseguiu construir, apesar de tudo. Apresente a ele a beleza da vida. Lembre-se sempre de que minhas mãos estarão segurando as suas, mental e espiritualmente. Amo você, minha guerreira linda! Não hesite em me ligar, estarei de plantão para você a qualquer momento. E, se não aguentar, basta me chamar que estarei, em pouco tempo, ao seu lado. Coragem, minha pequena!

Sentada no banco do ônibus que me leva para revisitar meu passado, a fim de me ajudar a ter um futuro bem resolvido, sorrio comigo mesma, sabendo que as palavras do Carlos tocaram a minha alma e mostraram-me que posso deixar-me ser amada, apesar dos acontecimentos do passado que me machucaram muito. É incrível como a vida concede-nos a oportunidade de curar nossas feridas, mesmo que fiquem cicatrizes que representarão tão somente uma lembrança do que se passou.

Não consigo pregar os olhos, nas seis horas que se seguem. O fluxo de adrenalina corre por mim no compasso de cada quilômetro rodado. Eu nunca sonhei voltar ao local onde tudo aconteceu. Depois daquele dia macabro, nunca mais voltei lá, mesmo a casa ficando dentro das terras humildes de meus pais. Eles sempre nos proibiram de fazer isso e, desde aquele dia fatídico, em que entramos pela porta de entrada da casa deles, até hoje, eles nunca mencionaram qualquer coisa, nem para criticar nem para analisar o ocorrido, resguardando a mim e ao Eduardo de todo o sofrimento. Meu irmão também nunca mais disse uma só palavra, entretanto, o menino alegre, de covinhas nas bochechas rechonchudas, transformou-se no menino da face encovada, com um olhar atormentado.

Crescemos calados, sem dizer nada um ao outro. De minha parte, tão logo foi possível, na minha juventude, fugi ao aproveitar a oportunidade que a vida ofereceu-me quando fui convidada para morar com outro anjo da guarda que a vida presenteou-me. E D. Agnelo, por sua vez, também nunca me disse nada a respeito do assunto. Hoje, algumas coisas fazem sentido quanto ao fato de não ter havido muito divulgação, na cidade, a respeito do acontecimento, que não se tornou, como seria comum em casos como este, um escândalo! Lembro-me de que, naquela época, poucos conheciam a história da nossa família, pois meu pai monstro nunca deixou ninguém nos ver até que o Eduardo fosse para a escola. Além disso, só voltamos a estudar na escola da cidade apenas anos depois, fator que deve ter praticamente apagado a conexão que poderiam fazer entre a tragédia e eu e o Edu. Lembro-me de que ia uma professora ensinar-nos em casa, a qual, anos depois, soube que era paga pela D. Agnelo, a quem nunca vou poder agradecer o suficiente nesta vida.

A freada do ônibus tira-me de meus devaneios e mostra que chegamos ao local de destino. Fecho os olhos e imagino que o que tenho a fazer será importante para eu poder seguir em frente e ser feliz.

Olho meu celular e lá tem uma pequena mensagem encorajadora.

Lembre-se de que estarei sempre com você, a cada passo do caminho... Vença, minha menina!

Tudo o que eu preciso é de algumas horas de descanso. A brisa que me saúda, quando piso fora do ônibus, parece ser um bom presságio para indicar que meu mundo solitário chegou ao fim, porque estou começando a aceitar que viver acompanhada e feliz, ao lado de alguém, pode ser muito mais prazeroso e trazer muitas alegrias.

Desta vez, tudo será diferente. Todas as outras vezes em que visitei Ajuricaba, fiquei hospedada na casa da D. Agnelo. No fundo, sei que o motivo não era o conforto da casa maravilhosa que ela tem, mas, meu subconsciente trabalhando para me proteger da lembrança do passado. Quero fazer diferente, pela primeira vez na vida.

Atrás da rodoviária simples e antiga há um ponto de táxi, para o qual me dirijo e passo o endereço da D. Agnelo para o motorista que vai levar-me. Pretendo visitá-la antes de pegar mais 12 quilômetros de terra, até chegar aos meus entes queridos e descobrir o que me reserva.

As ruas pequenas e estreitas mostram-me que não foram feitas muitas mudanças desde que fui embora, porém, desta vez, vejo tudo com cores diferentes, preenchida por um bem-estar e um novo objetivo para minha vida. A libertação!

As surpresas podem causar desencontros, o que confirmo assim que o táxi para em frente ao casarão e percebo as janelas do quarto da D. Agnelo fechadas. Este é um sinal de que ela não está em casa, pois manter as janelas do seu quarto abertas enquanto está em casa, porém, fechadas quando não está, é sua marca registrada, uma espécie de mania que nunca entendi.

De volta ao mesmo carro que me trouxe até aqui, digo ao motorista o próximo destino.

− Bah moça, meu carô é novo... Por lá tem um tri de quebra-molas e um monte de buracos! A corrida será bandeira 2 e ficará um pouco mais cara – ele fala cantado, com o sotaque das minhas origens.

Em outras ocasiões, isto significaria uma boa desculpa para eu desistir e não encarar, de frente, os meus medos, porém, desta vez, sinto forças e coragem suficientes para fugir de qualquer subterfúgio que minha mente medrosa criar.

− Pode seguir viagem, senhor. Não é a bandeira 2 o maior problema que tenho a resolver.

− Bah, moça, tu é que manda, tchê!

Ele dá partida no carro e as emoções vão fluindo. De repente, a coragem começa a dar lugar à covardia, a realidade aos fantasmas... a memória de uma lágrima vermelha, por ter sido marcada pelo sangue, vem à minha mente, junto com os olhos da minha mãe, deitada no chão da cozinha, ao lado do fogão à lenha.

Tenho vontade de chorar e, dentro de mim, posso ouvir meus berros de socorro. Sinto minhas mãos tremerem e o medo quer assolar-me. Abrir a janela traseira numa tentativa de recuperar o ar que me falta, no peito, enquanto ouço, mentalmente, a voz do Carlos a me dizer para inspirar e expirar, nos meus momentos de pânico, e começo o exercício de respiração para me acalmar.

Minha mão vibra e percebo que, como um amuleto, tenho, em minhas mãos, o celular que seguro.

− Imagino que já tenha chegado à sua cidade. Mande-me notícias!

Respondo, ainda com as mãos trêmulas, concentrada na minha respiração.

Já cheguei, meu rico amuleto!

Ele responde.

Já sinto saudades...

Fecho os olhos com as lembranças do seu rosto lindo sorrindo para mim, seus olhos azuis brilhando, dando-me força e encorajando-me.

Também... demais, na verdade, meu... querido!

Levo o celular ao peito, perdida, olhando para a vegetação dos pastos e pomares que vão passando diante de meus olhos.

Através da poeira da estrada, que se levanta atrás do carro, vejo, entre a paisagem do vale, em cima de uma colina, a casa e a vegetação que a cerca, nas terras humildes dos meus pais. São lindas e me dou conta de que não são uma ilusão e de que já chegamos apenas quando sinto o peso da mala em minhas mãos.

Sentada à frente da casa, com uma cuia de mate à mão, ouço minha mãe chamar meu pai, com emoção.

− Pai, nossa guria chegou! – seu sotaque cantado é como um bálsamo aos meus ouvidos – Bah, homem!!! Venha ajudar com as malas!

O cenário à minha frente faz-me lembrar da minha infância, sentada na mesma cadeira que minha mãe está, perdida nos meus sonhos de como conquistar, um dia, o mundo... claro que sempre lambuzada da minha fruta preferida, que pegava da mangueira que fica bem ao lado da casa.

De bombacha preta, com uma bota negra, uma camisa branca e cinto vermelho, tenho meu pai à minha frente. Engraçado é saber que ele está com a vestimenta habitual das ocasiões especiais e, pelo pouco que sei dele, deve estar com elas, desde cedo, esperando-me.

− Bah, mãe!!! Tu disseste que tinha chegado a nossa guria e não a princesa mais linda que já vi! – ele abre os braços e minhas mãos soltam as malas, seguras por minhas mãos contraídas, por causa do medo das lembranças.

− Bença, pai!!! − o abraço de urso sempre foi o seu melhor gesto de carinho – Que saudades, meu velho bigodudo! – não perco meu hábito e puxo seu grande bigode castanho... friso castanho, pois o homem é um senhor vaidoso, porque fica sem a carne, mas, não abre mão de comprar a tinta do cabelo e do bigode, que ele passa desde que me conheço por gente – Parece que vi um pelinho branco aqui – brinco com um fio imaginário.

− Bah! Impossível... – ele canta a palavra – Pintei ontem, tchê! 

− Brincadeira, bonitão! 

Ele pega minha mala e caminhamos juntos para a varanda 

− Dado! – minha mãe chama pelo meu irmão. 

Com cheiro de leite de rosas, abraço minha mãe... Para ela, o leite de rosas serve para tudo, faz parte da sua vida desde sempre e ela usa-o como colônia. Quando eu era adolescente espinhuda, ela dizia: “Guria, pegue meu leiteeee de rosas e passe nessas espinhas”. Agora, imagine-a falando leiteeeeee... é assim mesmo que imaginou. Engraçado é que, mesmo com toda a sua idade e com a pele branquinha e enrugada, ela não tem nenhuma manchinha, isso porque, segundo ela, milagreeees do leiteeeeeeeee de rosas. Ela sempre dava-me um pedaço de algodão com leiteeeee de rosas para limpar a pele: “Guria!!! Leiteeee de rosas é bom para limpar a pele e não deixar oleosa”. Enfim, para ela, o leiteee de rosas só faz bem, porém, para mim, nem tanto assim... Lembro-me de um dia em que o frasco caiu das minhas mãos e espirrou uma gota em meus olhos! O tal líquido milagroso fez arder até a minha alma. 

− Mãe!!! Isso é covardia! Mal chego à porta de casa e já sinto o aroma do meu prato preferido! − amo frango com quiabo. Nunca aprendi a fazer e confesso que tenho aflição da baba dele, mas, a minha mãe sabe tirar todinha e fazer o melhor prato do mundo. 

Ela entrega-me a cuia, despejando a água saindo fumaça de tão quente. 

– Guria, tu tá muito magrinha! Estes dias aqui te farão muito bem. 

− Estes dias aqui me farão virar uma porca de gorda, isto sim... − ronrono para ela, fazendo-lhe cócegas. Entramos juntas, rindo, pela porta. 

De repente, levanto meus olhos e vejo-o, parado à minha frente. Uma muralha bronzeada com os cabelos lisos mais compridos que os meus, olhando-me, com o olhar fundo, sem nenhuma expressão de felicidade. O Eduardo está mais lindo do que nunca! Ele é selvagem e, apesar de não ter vaidade nenhuma, parece que, por mais que ele tente, ficar feio, ele fica mais lindo! São notórias suas linhas de expressão, marcadas pelo tempo, mas, ainda assim, ele é um dos homens mais lindos que já conheci. Toda a vida ele foi cobiçado pelas meninas, ainda mais que, aqui no sul, a maioria dos homens são loiros, com traços alemães e suecos. Nossos traços latinos sempre nos diferenciaram dos demais, porém, ele nunca se envolveu emocionalmente com ninguém. Mais uma vítima marcada pelo passado. 

O que sempre pareceu uma contradição para mim é que ele, apesar de usar drogas, regularmente, podendo ser classificado como um dependente químico, sempre comeu muito bem e nunca recusou os serviços pesados que têm que ser feitos num sítio, não permitindo que nosso pai fizesse essas tarefas. Sempre admirava o tanto de peso que carregava, que parecia que o poria chão abaixo. Além disso, ele vivia, digamos, treinando, se é que posso chamar assim o que ele fazia, num saco que, no início, nosso pai tinha feito para nós, mas, que foi aumentando e ficando mais pesado conforme crescíamos, graças ao próprio Eduardo, que era quem fazia essas mudanças. 

A história desse saco nunca saiu da minha mente! Lembro-me como se fosse hoje quando meu pai, dias depois que chegamos à casa deles para ficar, levou-nos ao quartinho de guardar ferramentas, mostrou-nos um saco de areia, pendurado numa viga do teto, e disse-nos: “Sempre que sentirem que tão com raiva, não precisam ser agressivos com ninguém, mas, também, não precisam trancar essa coisa ruim dentro de vocês. Quero que venham aqui e soquem esse saco até a raiva ir embora, entenderam? Tentem, agora!”. Recordo-me de que, no primeiro soco, eu gritei de dor, mas, meu pai disse que, no começo, sempre doeria, porque a raiva dirigida aos outros sempre nos machuca de volta, mas, no saco de areia, só doeria no início, até que nós ficássemos acostumados e não sentíssemos mais a dor, contudo, quando direcionada a outras pessoas, a raiva sempre voltaria para nos machucar. Eu dei mais alguns socos e disse que tinha entendido e prometi-lhe que faria isso. Agora, quando o Eduardo começou a socar, nunca tinha visto tanta força, rapidez e constância nesse tipo de ato! Ele simplesmente parecia não se cansar nunca! Meu pai teve que fazer com que ele parasse e mostrasse a ele suas mãozinhas machucadas, dizendo: “Filho, tu também tem que aprender que todos temos nossos limites! Se uma coisa começa a nos machucar muito, é porque é hora de resolver o que quer que esteja machucando-nos ou, então, parar! E, para você, agora, é hora de parar, piá!” 

Olhando em seus olhos, agora, algumas lembranças vêm à minha mente. Lembro-me de como ele sempre foi superprotetor até que tudo aconteceu. Éramos muito diferentes, enquanto eu chorava por tudo, ele sempre era compreensivo e cedia tudo para mim. Minha mãe dizia que o Eduardo saiu da barriga sorrindo e eu saí dizendo ao mundo para não mexer comigo. Depois da tragédia, ele vivia socando aquele saco, quase nunca tendo tempo para mim. Claro que sempre cuidava de mim sem me deixar perceber que fazia isso, o que só consigo identificar agora, por estar permitindo fazer as associações com o que aconteceu em nossas vidas e a tragédia que as mudou. Deus, por que não conseguimos ficar mais unidos do que mais distantes? Será que a distância segura que nos impusemos foi para evitar as lembranças? Não sei se foi o caso dele, mas, definitivamente, foi o meu... Quero mudar isso! 

− E aí, bonitão? Vai abraçar-me e dar-me boas-vindas ou vai ficar aí parado, como dois de paus? 

− Estou pensando ainda... – caçoou de mim – Tu tá bonitona, hein? Hum, mas, deixa-me adivinhar... – ele levanta os olhos para cima, como se estivesse lendo consultando os céus – é obra da natureza! 

Rimos juntos, porque, toda as vezes em que ele encontra-se comigo, diz o mesmo, que estou linda. E eu sempre digo isso, que é obra da natureza. Até parece, né? Deixa a esteticista, personal trainner e cabeleireiro que cuidam do meu visual ouvirem isso! Acho que são capazes de me transformar na gata borralheira... 

Ele puxa-me para seus braços e fico imaginando que será muito sortuda a mulher que, um dia, derreter seu coração quebrado. 

– Senti saudades de tu. Tu demoraste muito para voltar desta vez! 

− Também senti saudades de você, grandão! Desculpe-me. Acabei envolvida demais nos problemas deixados pelo antigo sócio da Bárbara, que deixei de lado o mais importante para mim, minha família! Sinto muito! Por isso é que, desta vez, ficarei aqui em casa e não na D. Agnelo, além de passar mais dias do que das outras vezes. Vai até se cansar de mim. 

− Pode apostar que sim – ele empurra meu ombro com o seu. 

Conviver com ele não é difícil. Sempre calado, observa tudo. Meus pais são totalmente protetores e isto sempre me incomodou muito. Quando falei a respeito disso com o Carlos, este me ajudou a refletir sobre o julgamento que sempre fiz dele. Entendo muito melhor o comportamento de todos nós e quero fazer o que for possível para mudar esse estigma mórbido que nos rodeia, a mim e ao Eduardo. Fico imaginando o que ele vai dizer quando contar que tenho uma notícia especial para ele: que, se quiser, terá um emprego. Apesar de ter relutado muito em aceitar a oferta do meu garanhão, fazendo mil objeções a respeito, ele deixou claro para mim que lidar com isso era problema dele, que resolveria o que quer que fosse necessário, pois, uma vez que a decisão era dele, igualmente as consequências seriam.

Durante anos, meu irmão foi rebelde! As brigas em nossa casa eram insustentáveis, porque ele vendia quase tudo para conseguir drogas. Ele sempre viveu num mundo só dele, porém, uma coisa eu tenho que admitir, ele nunca fez mal a ninguém que não fosse somente a ele mesmo. Todas as vezes em que foi preso por brigas e porte de drogas, defendeu-se sozinho e nunca deixou meus pais serem envolvidos. Não quero compensá-lo, em dez dias, pelos anos que perdemos separados, porém, não consigo seguir em frente e viver feliz enquanto uma parte de mim continua presa ao passado. 

− O que acha de um passeio, desta vez, pelo terrão, naquela sua moto velha e barulhenta? Vamos alucinar os galinheiros? 

Ele encolhe os ombros, com um meio sorriso de lado. Será que estou sendo tão previsível a ponto de ele saber que estou querendo uma aproximação que nunca tivemos? 

− Bah, aquela moto velha e barulhenta não é mais tão barulhenta assim! Ele vem trabalhando nela há anos, né, guri? – meu pai fala, todo orgulhoso, como se ele tivesse feito milagres com uma Harley Davidson 1978, única herança deixada na garagem da antiga casa e que não tenho nem ideia de quem trouxe para cá. 

− Temos um mecânico aqui, então? – sento-me ao lado dele, na antiga poltrona reformada de dois lugares. 

Ele sempre foi despreocupado, pulando de um emprego a outro, nunca se firmando em um só e, por esse motivo, eu não soube em qual profissão destacou-se. 

− Curioso – ele responde. 

− Vamos jantar??? A guria viajou o dia todo, deve estar com o estômago saindo pela boca! 

− Dona Amparito, qual será o tamanho que eu teria, na horizontal, se tivesse vivido todos estes anos ao seu lado? 

− Bah, guria, estaria do nosso tamanho, tchê! Tu vês algum gordo aqui? – ela pergunta, com a colher de pau na mão e um avental amarrado na cintura, tudo confeccionado por eles, artesanalmente. Em cada cômodo da casa, tudo, desde a decoração até os móveis, foi feito por eles. Meu pai tem uma pequena marcenaria, nos fundos da casa, e, quando eles não estão fazendo artesanato para vender, estão inventando alguma coisa para a casa. 

Sobre a mesa ela já colocou a salada de alface, couve refogada, pão caseiro, arroz e o famoso frango com quiabo da D. Amparito. Jantamos com as galinhas, literalmente falando, porque, em meio à grande cozinha, que também é a copa, os animais que meus pais criam têm acesso livre quando alguém esquece o portão aberto. Hoje não poderia ser diferente. Enquanto estamos sentados, jantando, depois da oração feita pelo meu pai, agradecendo nossa ceia, duas galinhas e um pavão entram para ciscar. Com um guardanapo na mão, minha mão toca-os, dizendo: 

− Fora, Clodovil, Tetê e Zezé! 

Faço uma pausa, refletindo em como ela sempre gostou de colocar nome nos bichos, e não resisto a uma brincadeira. 

− Por acaso, não estamos comendo nenhuma Hebe, Nini, Tatá ou coisa parecida, né? 

− Não, não... Meu irmão entra na brincadeira... Esta que estamos comendo, a mamãe não conheceu, comprou lá na venda do seu Zé e, quando a pegou, não tinha nome gravado. 

Rimos todos e ela, por sua vez, não deixa passar em branco. 

− Bah, guria, vou dizer para a Tetê, amanhã cedo, quando for pegar seus ovos, que tu não irás comer ovos mexidos porque não quer comer seus futuros pintinhos. 

O bom humor dos meus pais sempre foi algo em que me espelhei. Tudo para eles é levado sem grandes dramas, são simples e objetivos, não buscam problemas, sempre foram cúmplices em buscar soluções. 

Depois de comermos os deliciosos doces em compotas que minha mãe mesma fez, ajudo-a a arrumar a cozinha e, enquanto enxugo os pratos, tomo um susto quando algo vibra no bolso de trás da minha calça. Por incrível que pareça, andei pela casa inteira procurando sinal no celular para enviar uma mensagem para a Babby, para avisar que cheguei bem, e para o meu garanhão, para dizer que está tudo correndo da melhor maneira possível, sem sucesso. Horas longe dele e, ainda por cima, sem conseguir sinal, deixam-me angustiada com o fato de nem, ao menos, poder ligar para ele. 

Está tudo bem? Mandei várias mensagens e você não respondeu. Tentei ligar, mas, só caiu na caixa postal. Mande, ao menos, um sinal de fumaça, caso contrário, pegarei o primeiro avião para te encontrar. 

Rio com a mensagem e com a possibilidade de ele vir atrás de mim! Até que eu acharia isso uma de suas boas travessuras... 

Bonitão, a ameaça de você vir até mim é tentadora. Mas, não respondi antes porque aqui, no sítio, o sinal é ruim e oscila demais. Acabei de jantar e está tudo correndo bem. 

Saudades! 

− Bah!!! Estou vendo um sorriso e olhos brilhando ou é impressão minha, guria? 

Dou apenas um passo à direita, tentando disfarçar, com um prato na mão e os olhos vidrados na tela... mas, pronto, o sinal já era... Agora, ficarei com a D. Amparito olhando para mim, ansiosa para o sinal ser reestabelecido. 

− Uma pessoa especial – confesso, sabendo o que ela quer saber. 

− Tu nem precisas contar-me que tem uma pessoa especial, vi em teus olhos quando chegou aqui. Você está feliz? 

− Hum, hum... Minha felicidade é tanta, que tenho até medo de confessar em voz alta! 

− Bah! Isto é muito bom! Viver sozinha, naquele monstro de cidade, não é bom para uma guria. 

− Mãe? – quando vou perguntar a ela como nos encontrou no dia do acidente e por que nunca falamos sobre isto, meu irmão entra na cozinha. 

− Bença, mãe! Estou saindo. 

Olho para ele, sem saber ao certo o que dizer. Na verdade, queria ficar conversando com ele. Ele parece tão distante que, às vezes, vejo um estranho em seus olhos. Talvez, juntos, possamos abrir uma velha e dolorida ferida e tentar fazê-la cicatrizar. 

− Se não estivesse tão cansada, pediria para te acompanhar. 

Ele levanta o ombro. 

– Talvez outro dia – ele beija a testa da minha mãe e vejo, nos olhos dela, a dor que sente em vê-lo sair, sabendo o que fará. 

Alguns segundos e o antigo e estridente motor da moto antiga dá lugar a novo som, gostoso de ouvir, como aqueles de comerciais e filmes de motos Harley. 

Vejo minha mãe parada à porta, em silêncio, na penumbra da noite, com uma lágrima tímida, que limpa com o dedo. 

− É sempre assim – ela diz, cabisbaixa – Ele sai e volta destruído. E hoje não será diferente. Quando ele era mais guri – fala como se estivesse fazendo uma confissão –, ele era mais agressivo, autodestruía-se, mas, nós mostrávamos para ele que precisava de ajuda. Fizemos, muitas vezes, vistas grossas às suas ações violentas, porém, estas sempre foram dirigidas somente a ele. Toda a vida, sem ele saber, acertamos suas dívidas com traficantes, com medo de sua ... – ela para de falar e soluça. 

Seguro sua mão fria, com o coração apertado. 

– Nossa família adoeceu! Eu e seu pai vimos vocês afastando-se cada dia mais. Tudo foi acontecendo e não tivemos forças para lidar com o problema, então, começamos a agir por impulso, assim como ele. Todas as vezes em que ele acordava, depois da devastação que o acometia, dizia que não haveria próxima vez, mas, sempre tinha – ela chora sentida. 

− Não se culpe! – digo, em lágrimas, sentindo toda a sua dor. 

− Não nos sentimos culpados, sentimo-nos incapazes de fazer mais por vocês. 

− Não fala isso! Vocês foram maravilhosos! Não assuma a culpa que é de um homem que desgraçou a vida de cinco vítimas inocentes! – ela olha, compreensiva, para mim, sabendo que todos nós fomos vítimas daquele infeliz, e, ao mesmo tempo, surpresa, porque, nem sei como criei forças para falar isso para ela, uma vez que nunca tocamos uma vírgula que fosse a respeito do assunto. 

− Sim, fia, aquele homem levou quase tudo de nós – esta é a primeira vez que ela admite o que, dentro de mim, sempre soube − Meu guri, reconheço, já melhorou muito! Cresceu e não se mete mais em confusões. A única confusão que ficou, é a que existe dentro dele. Vejo, nos seus olhos, como ele destrói a si mesmo a cada dia que passa! Isso dói muito, fia! Bah, eu e teu pai tentamos sempre aconselhá-lo – ela passa o avental em seu rosto molhado pelas lágrimas. 

− Mas, ele ainda gasta todo o dinheiro de vocês! – digo, com um misto de raiva e pena dele. 

− Não mais, guria... Não mais... – ela repete – Se ficamos sem dinheiro é porque teu pai acaba comprando algumas peças para a moto dele, para que tenha um pouco de felicidade. 

− Mãe, ele precisa trabalhar! Não pode viver às custas de vocês a vida inteira! Eu entendo que não deve ser fácil para ele tudo o que se passou, assim como não é fácil para mim e para vocês, mas, ele precisa reagir, crescer... – falo, exaltada e nervosa. Tremo, com uma fúria gigante, porque, no fundo, sinto-me impotente! Quero tanto poder ajudar e não sei por onde começar! Quero resguardar meus pais de mais sofrimentos, pois já estão com uma certa idade.

Meu pai chega, com a cuia, na cozinha. 

− Bah! O que está acontecendo aqui? Estão chorando? – minha mãe vira-se para a pia, disfarçando sua angústia, pois meu pai anda doente e ela teme por ele. 

− Chorando de felicidade por estar aqui com vocês! – digo, abraçando-o com minhas mãos trêmulas e geladas. 

− Precisa agasalhar-te, guria! Aqui, no vale, a noite é fria. 

Dou um beijo no pequeno espaço da face dele, onde não tem barba, e coço meu nariz. 

− Sua barba ainda espeta... – brinco com ele, enfiando meus dedos na sua costela fofinha. 

– Bah! E tu cresces no tamanho e continua espetando-me, com estes dedinhos perversos, na costela. 

− É muito bom estar aqui, de volta, com vocês! Vou tomar um banho e agasalhar-me... Bença, pai e mãe! – aceno para eles e sigo para o quarto. No seio da família gaúcha, cultiva-se o respeito e amizade. Estes ensinamentos meus pais sempre nos passaram e, por esse motivo, quando me dirijo aos meus pais, peço a benção para eles. 

Abro a porta antiga e bem conservada do quarto que vivi metade da minha vida. De um lado, está a cama do Eduardo e, do outro lado, a minha, arrumada como se estivesse sempre me esperando. Os móveis são de madeira maciça, talhados com desenhos provençais. Meus pais são muito caprichosos e têm muito bom gosto. Quem vê a casa deles, sabe que é de uma família humilde, mas, reconhece sua beleza ímpar. Já no banho, o cheiro do sabonete desperta-me o riso, porque, assim como o leiteeee de rosas, minha mãe nunca trocou a fragrância do sabonete Francis violeta por nenhum outro, sendo esta mania outra coisa que se torna sua “marca registrada”. Fecho os olhos e desço a esponja molhada em meu corpo. Mesmo a fragrância forte do perfume não me impede de me lembrar do cheiro e do sabor do meu garanhão. Sinto minha pele arrepiar e o desejo despertando...

O que será que anda fazendo? 

Acabo, rápido, o banho, antes que sucumba ao desejo no chuveiro, gastando toda a água que vem da cisterna... 

Já sentada na cama, depois de tentar, por diversas vezes, sinal do celular, resolvo pegar o telefone fixo e, para minha surpresa, ele continua na sintonia de pai de santo, ou seja, só está recebendo ligações. Conclusão: não tenho como ligar nem para a Babby, que deve estar puxando os cabelos, irritada comigo por não lhe ter dado notícias ainda, nem para o Carlos! 

Respiro fundo, quando o quadro emoldurado, acima da cama do Eduardo, chama minha atenção. É uma foto nossa, em frente à casa, sentados num potrinho. Parece engraçado, mas, fico, por minutos, viajando no tempo e lembrando-me do dia em que essa foto foi tirada. Meus pais não tinham máquina fotográfica e, por este motivo, não temos fotos guardadas para relembrar de nossa infância. Acho que as únicas fotos que temos são as que tiramos na escola, com a turma, e esta emoldurada no quadro. 

Antigamente, fotógrafos viajantes passavam por lugares afastados, com seus potrinhos viajantes, para fotografar e vender as fotos depois. E essa foto meus pais fizeram questão de guardar. Meu Deus, como eu era desajeitada, de vestido de poá vermelho e branco, de Maria Chiquinha e minha cara... Sorrio sozinha, o bocão está aberto, mostrando os dentes, menos um que faltava, na frente. Juro que se não fosse a única recordação minha e do Dado crianças, eu esconderia essa foto para ninguém nunca ver. Ele, por outro lado, mesmo de bermuda azul de tergal, que minha mãe mesmo confeccionou, e uma camiseta branca, é o menino mais lindo que Ajuricaba jamais viu! Na imagem é nítido o quanto seus olhos estão distantes, olhando para um lugar que só ele vê. Tiro o pequeno quadro da parede e abraço-o, sentindo as lágrimas deslizarem pela minha face. 

− Por que, meu irmão, tínhamos que passar por tudo isso? Por que nos perdemos um do outro? Choro, sentida, abraçada ao quadro. 

Sinto-me invadindo o espaço dele ao dormir aqui, mas, embora tenha insistido com minha mãe para que me deixasse dormir na sala, nem ela nem o Dado deixaram. Porque, se tenho uma coisa de bom é que, onde encosto, eu durmo, sem maiores problemas. Aliás, desconfio que até ronco, o que morro de vergonha de perguntar ao Carlos... 

Acho que adormeci, porque estou, agora, acordando com um ar quente, na minha testa, e um lábio frio encostado nela. O cheiro misturado de perfume amadeirado com erva e álcool deixa-me consciente de que é o Eduardo. Ele sempre repetiu esse gesto de carinho enquanto eu dormia, nunca nada além disso, em outra circunstância. Depois do que aconteceu com nossos pais, ele passou a ser seco e distante e eu passei a aceitar esse gesto de carinho, quietinha no meu canto, com medo de perder este único sinal de afeto. 

De olhos fechados sinto-o afastar-se da cama... bem, na verdade, ouço-o mesmo é cambalear até a outra cama. Abro, lentamente, um dos olhos, para dizer a ele para ficar com a sua cama, onde caí no sono, e para pular para a minha, pois, além de estar invadindo um espaço que passou a ser só dele, durante anos, estou invadindo seu lugar de dormir, mas, desisto na hora em que vou falar! Vejo meu irmão num estado lastimável, na penumbra do quarto, iluminado apenas pela luz da lua que passa pelas frestas da veneziana. Mal consigo visualizar sua feição deformada, que é tocante e triste! A impressão é a de alguém que parece não dormir há dias, tendo os olhos saltados, voltados para o nada! Seu corpo está inquieto e eu contraio-me, sem saber o que fazer. Meu peito aperta, um nó forma-se na minha garganta e, quando ele cai na cama, desequilibrado, eu seguro um soluço que deseja sair dos meus lábios. Uma lágrima escorre pelo canto dos meus olhos. Quero levantar e abraçá-lo, mostrar que estou aqui, mas, não consigo... minha razão diz que este não é o momento e que não sou uma heroína que resolveu aparecer, depois de anos, para salvá-lo. Fico olhando-o virar, de um lado para outro, não por estar desconfortável, mas, porque parece que o mundo dele está girando. De repente, um suspiro e o compasso de sua respiração mostram que ele dormiu. Espero alguns minutos e vejo a porta do quarto abrir-se, lentamente. É a figura magrinha e baixinha de nossa mãe, andando, descalça, pelo quarto, silenciosamente. Ela tira os sapatos dele, ajeita-o o melhor que pode, cobrindo-o. 

Meu Deus!!! Isso não é justo! Por favor, mande forças para a minha família e permita que eu possa ajudá-la, além do suporte financeiro que já lhes dou... 

Ela vira, em direção da cama em que estou e eu fecho os olhos antes que ela veja-me acordada. 

− Meus doces meninos, como é bom ter vocês dois junto de mim! – ela arruma a coberta em cima do meu corpo e sai do quarto. 

Fico, não sei se minutos ou horas, chorando baixinho. Parece que toda a dor de um passado enterrado nas profundezas da minha mente vem, agora, espalhar seu fel no presente. Mil pensamentos vêm à minha mente... Olha, posso dizer que tenho orgulho de mim por nunca ter sido do tipo que fica reclamando da vida, e tampouco farei isso agora, mas, posso até ter bloqueado as lembranças tristes, mas, agora que tudo está recordado, darei o melhor de mim para dar um pouco de dignidade e amor a esta família que amo. 

− Não!!! – ele grita, agitado. 

− Ela, não! – as palavras saem altas e desconexas dos seus lábios. Ele debate-se e, pela primeira vez em toda a minha vida, vejo uma pessoa perdida em seu pesadelo. 

− Eu pago, mas, ela, não! – minha Nossa Senhora, será que ele deve para traficantes? Será que não aprendeu, nestes anos todos, que ele pode sair machucado ou morto por dever a pessoas sem coração? 

− Você já a levou! Ela, não! – ele debate-se, parecendo sentir-se incapaz de se mover, falar ou agir. Parece que existe alguém falando com ele... é angustiante vê-lo assim. 

− Não mexe com ela, senão eu mato você! – levanto, depressa, percebendo que ele não está sonhando com traficantes, mas, tendo um pesadelo com a minha mãe e aquele assassino desgraçado. A frase “você já a levou” deixa-me consciente de que ele ainda sofre... e muito! 

− Edu – coloco a mão, de longe, nele. Não sou boba de chegar perto porque, não sabendo que sou eu, ele é capaz de me dar um murro, pensando que é nosso pai monstro ou seja lá com quem quer que ele esteja tendo esse pesadelo. 

Ele fica quieto, por segundos, e eu acho que acabou o pesadelo. Fico olhando para ele e tomo um susto quando ele arregala os olhos e grita. 

− Nãooooooooooo!!! Você não vai levar minha irmãzinha com você, seu assassino! 

Nessa hora, não existe medo, pavor ou coisa parecida que me impeça de o abraçar, tremendo. Preciso e tenho que fazer alguma coisa! Pensa, Patrícia, pensa!!! 

− Dado! Está tudo bem! – deito com ele e abraço-o forte para que pare de se contorcer. Ele não para e eu falo mais alto – Eduardo, acorda! Ele não me levou! Eu estou aqui, meu irmãozinho! Isto é só um pesadelo! 

Ele para quieto e murmura, grogue:

- Ao menos tu eu consegui salvar, minha guria brava! 

Ele relaxa e não diz mais nada, continuando a dormir, perdido no seu sono. Fico abraçada a ele, afagando seus cabelos negros e macios, que estão grudados em seu rosto suado. Seu coração, antes acelerado, vai, aos poucos, voltando ao ritmo normal. 

− Dado, farei de tudo para te ajudar! Confia em mim e em você! Você vai vencer, meu irmão. 

Levanto, sem sono e triste. No fundo, sinto-me culpada por não ter estado com ele estes anos todos! Fecho a porta do quarto, com cuidado, e caminho, solitária, até a cozinha. Em cima da mesa, vejo a cuia e o mate. Coloco a água na chaleira e espero que ferva. Quando isso acontece, preparo tudo e abro a porta da cozinha, indo até a varanda da casa. Já está amanhecendo. Envolvo-me em uma manta que minha mãe deixa na cadeira reclinável e, tomando o mate, fico olhando, perdida, para as folhas umedecidas pelas gotas do sereno. Reflito a respeito dos pilares nos quais estruturei minha vida, fugindo de um passado que eu não permiti vir ao meu consciente, deixando para trás pessoas que sofreram tanto quanto ou até mesmo mais do que eu. Sim, concordo que, em muitas áreas, fui bem sucedida, mas, também, deixei de crescer em outras, como na emocional. Sei que minha maior motivação foi a de dar uma vida melhor para meus pais e não permitir que ninguém me tratasse como uma vítima. Mas, consegui chegar até aqui, percebo, agora, porque conquistar algo e ser feliz depende de cada um de nós. E eu, a despeito de todos os traumas e adversidades, cheguei até aqui, sendo que minha longa jornada preparou-me para enfrentar os demais desafios, no tempo certo, estando eu madura para superar toda a dor, tentando fazer isso junto com meus pais e irmão. 

Sei que nós, seres humanos, queremos que as coisas aconteçam como num passe de mágica, mas, a natureza mostra que tudo é uma questão de tempo. Não é porque a semente é deformada, cheia de imperfeições, que a árvore que dali nascerá só dará frutos ruins. Não, a semente tem o tempo para brotar, fortificar-se e virar uma árvore que pode vir a dar suculentos e deliciosos frutos. Assim como a árvore, que precisa de um tempo, condições climáticas e ambiente propício para frutificar, a vida está mostrando-me que amadurecer é preciso, porém, que não há um tempo definido para isto acontecer. Entretanto, de qualquer maneira, leve o tempo que for, temos que querer esse amadurecimento e procurar libertar-nos dos nossos antigos fantasmas para que ele possa ocorrer. Hoje, começo a criar forças e acreditar que a confiança não é herdada, ela tem que ser conquistada e aprendida individualmente. 

E a natureza, é certo, depende de um mínimo de esforço para seu funcionamento. O mato, por exemplo, não se esforça para crescer, ele apenas cresce. Vislumbro, no horizonte, os primeiros raios de sol. Como senti falta disto! 

− Bah, guria, sentiste comichões na cama? – a voz rouca e cantada, com o mais lindo sotaque gaúcho, desperta-me do meu momento filosófico nostálgico. 

− Aprendi a acordar cedo. 

− Então, vamos comigo acordar a Ditinha, afinal, sem leite nosso café fica sem graça – meu pai convida-me. 

Senhor!!! Enquanto calço as botas, penso, comigo mesma, que se contar para a ajudante da limpeza do meu prédio qual é o nome da vaca leiteira do meu pai, perco a amizade dela. 

− Espera eu calçar a bota? 

− Bah! E tirar este pijama, também, tchê! Porque não sei se as galinhas daqui vão gostar de ver alguém com foto de um dos seus filhotinhos andando, por aí, com um gato preto atrás... – dou risada porque ele está referindo-se ao o pijama do Piu-piu e Frajola que estou usando. Sei que é infantil, mas, ele é tão quentinho e eu amo os dois! Além disso, tenho que aproveitar para curtir este meu pijaminha favorito enquanto estou longe do meu garanhão, porque nem que a vaca tussa eu coloco-o ao lado dele! Imagina a cena! Dou uma risadinha sapeca ao meu pai e corro para trocar de roupa. Acho que estes dias aqui serão melhores do que eu imaginava.



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