Patrícia Alencar Rochetty...
Os dias vão passando e o Eduardo, devagar, a cada dia que passa, deixa-me ir tirando um tijolinho da muralha que construiu ao seu redor.
Não sei se é porque sou atrapalhada demais como irmã e só dou fora ou se o meu bom humor tem rendido boas risadas para ele. Nas duas primeiras noites, as cenas foram iguais, ele saiu e voltou totalmente embriagado, cheio de seus pesadelos ao dormir e tive a certeza de que a bebida e qualquer outra coisa que ele use parece ser uma forma de amenizar os seus medos. Cada vez que ele saiu, nossos pais foram compreensivos e permissivos, não fazendo nada para impedi-lo de se aniquilar.
Não sei se é porque sou atrapalhada demais como irmã e só dou fora ou se o meu bom humor tem rendido boas risadas para ele. Nas duas primeiras noites, as cenas foram iguais, ele saiu e voltou totalmente embriagado, cheio de seus pesadelos ao dormir e tive a certeza de que a bebida e qualquer outra coisa que ele use parece ser uma forma de amenizar os seus medos. Cada vez que ele saiu, nossos pais foram compreensivos e permissivos, não fazendo nada para impedi-lo de se aniquilar.
Ele passa os dias quieto, num mundo só dele. Nossa relação é dominada por uma carga emocional muito forte, parecendo que nós dois pisamos em cascas de ovos o tempo todo, tendo bate-papos curtos e que não dão brechas para o passado entrar. Nossas interações são contidas, mesmo que, lá no fundo, tenhamos coisas positivas para relembrar juntos, o que nos impede de nos aproximarmos. Acho que a única intimidade que tivemos, até hoje, foi por meio das brincadeiras da infância, quando passávamos muito tempo juntos e conhecíamos um ao outro. Hoje, já não sei mais como me aproximar dele, mesmo que a única coisa que almeje,no que diz respeito a ele, seja recuperar nossa intimidade e oferecer-lhe apoio emocional. Quero muito, junto com ele, entender seus conflitos, discutir seus pontos de vista e mostrar que estou de braços abertos para enfrentarmos qualquer coisa junto com ele.
De longe, vejo meu irmão indo em direção à casa. Não penso duas vezes, pego o caroço da manga que acabo de chupar até o talo e miro no local em que ele está.
Ô mira infeliz, que me faz errar o alvo.
− Ei, bonequinha, vejo que não perdeste o velho costume.
Sinto-me como o Cha Ka, do filme Elo Perdido[1]... nem acredito que consegui subir na mangueira como uma criatura pré-histórica! Confesso que apanhei um pouco e, como minha bota da cidade grande não contribuiu, tive que arregaçar as calças e ficar descalça e, para minha vergonha, o tronco escorregadio deu de dez a zero em mim. Tomei uns dois tombos, mas,quando consegui firmar o equilíbrio, subi os galhos, mesmo que puxassem meus cabelos, desfazendo meu rabo de cavalo. Agora, estou aqui em cima, toda lambuzada de tanto chupar manga, mas, com medo de descer.
− Bonitão, é difícil conseguir uma escada?
− O que aconteceu? Desaprendeste a descer como uma macaquinha?
− Acho que os anos deixaram-me enferrujada e medrosa. E você fala isso porque não está vendo a altura em que estou... só de olhar para baixo faz com que eu tenha vertigens! Além disso, meu estômago já não é o mesmo... ou você acha que chupar cinco mangas não é um exagero? – falo, divertida, sabendo que estou sendo a mesma gulosa de sempre, porém, desta vez, as mangas tiveram um sabor mais doce, pois todas que chupei fizeram-me lembrar do meu garanhão, de maneira indecente!
Rapidinho ele vai e pega uma escada, a qual fica segurando para não ter perigo de ambas cairmos. Quando desço o último degrau, ele está com o sorriso estampado no rosto.
− O que foi?
− Acho que a bonequinha transformou-se numa bruxinha descabelada, mas, mesmo assim... – ele abaixa a cabeça e olha para mim – a mais bela bruxinha. Deveria ver tua cara no espelho.
Rio junto com ele e lembro-me da D. Agnelo repreendendo-me em todas as vezes em que me pegou com o fruto do pecado.
No dia anterior, meus pais disseram que, desde que ele voltou da última clínica de reabilitação, ele não teve mais problemas com drogas, o que vinha acontecendo há anos. Eu duvidei que isso fosse verdade por causa de ver como ele chega algumas noites, mas, tenho que admitir que comprovei, com meus olhos e olfato, que ele cheirava somente a tabaco e bebida, nada de erva, nariz vermelho ou picada de agulha.
Relembro a conversa.
− Vocês estão iludindo-se. Ele gasta todo o dinheiro de vocês!Inclusive o dinheiro das despesas da casa!
− Bah, guria! Nós não temos mais problemas com cobradores na nossa porta, tchê!
Fico sem entender, mas, ao mesmo tempo, irritada em ver como eles querem tampar o sol com a peneira, se sei que eu mesma estou sofrendo sem telefone, aqui, porque está cortado por falta de pagamento, cujo dinheiro só poderia ter ido para as drogas dele! Consegui falar muito rápido com a Babby e com o Carlos, mas, apenas por mensagens, quando apareceu, milagrosamente, sinal.
− Não!?! Como, não?
Um olha para o outro, de maneira cúmplice.
− Não foi ele quem gastou o dinheiro. Foi teu pai.
Meu pai olha para mim com as sobrancelhas grossas.
– Bah! – encolhe os ombros − O guri está mudado! Vem procurando emprego, dia e noite! Vai para as entrevistas e quase sempre volta derrotado cada vez que recebe um não. Então, vendo o talento dele arrumando as motos e os carros de todos aqui de perto, decidi ajudá-lo. Comprei as peças novas para sua moto e acabei parcelando tudo.
Olho para eles furiosa por serem tão orgulhosos e por tirarem a roupa do corpo para ajudar os outros, sem considerar que sempre digo que é só me pedir quando precisarem de mais dinheiro do que eu mando! Poxa, um dos motivos para querer alcançar uma situação financeira confortável, privando-me a vida toda de muitos luxos, foi justamente por querer dar-lhes uma vida melhor e com menos preocupações financeiras. Fico chateada por eles não entenderem isso!
− Vocês poderiam ter me ligado! Quando é que vão aceitar que posso ajudar vocês? Eu sinto como se fosse uma imprestável quando descubro essas coisas! Vocês não entendem que isso me exclui de um grupo muito importante, que são vocês, minha família?
− Fia, não é isso! Tu já dás muita ajuda para nós! Não seria certo pedirmos mais! Até as clínicas caras do Dado tu pagaste, sem nunca reclamar. Então, damos nossos pulos no que podemos, não precisa preocupar-te! Apertamos um pouquinho aqui, outro ali e tudo vai se ajeitando.
− Ainda não concordo muito com isso, não! Sabe, gostaria que entendessem que não vejo problema de gastarem dinheiro com o Dado, o problema é a maneira com que vocês aceitam tudo, sem serem mais firmes com ele! Serem permissivos não vem ajudando-o a encontrar o próprio caminho! Eu quero muito que ele consiga sair desse buraco negro e sem alegria, para uma vida mais feliz e sem toda a desgraça que as drogas trazem... mas, se vocês deixam-me de fora, como posso ajudar meu irmão? Se o que vocês estão dizendo é verdade, eu poderia tê-lo ajudado nisso! E teria feito com muita alegria e esperança!
Estou triste porque, se tivesse sabido, além de contribuir, teria incentivado, pois se gastei rios de dinheiro com clínicas de desintoxicação para ele, como não faria isso para uma coisa que ele fosse sentir-se produtivo e útil, tirando-o do caminho destrutivo da dependência química? Como consigo vislumbrar sua mudança atual, poderia, atualmente, ter mais abertura para conversar com ele, a fim de vencermos esse nosso passado cruel. Eu percebi que ele passa o dia ajudando a todos que o procuram, até pneu de carroça eu o vi arrumando, com um pedaço de plástico e cola quente! Tudo muito improvisado, mas, bem criativo!
Na terceira noite, tive uma ideia para me aproximar dele. Pequei o jogo de xadrez empoeirado de cima do armário e lhe fiz um desafio. Se eu ganhasse, ele deixaria-me pilotar sua moto, caso contrário, se eu perdesse, pagaria um jantar especial para ele. Claro que ele não quis jogar, no começo.
− Está com medo, Dado? Quando a sua moto era uma casca velha, com apenas um motor rodando, você não se importava com ela... ou está com medo de perder uma bela partida?
− Capaz! − ele diz, pronto para sair de casa.
− Sempre preferiu jogar com o papai, né? Ele sempre foi permissivo com você – percebo que minha tática funciona, porque ele para e levanta a sobrancelha – Deixo você com as pedras brancas, nem me importo de você começar, afinal, prefiro o ataque – faço cara de vencedora.
− Boneca, não tenhas esperanças, capturarei teu rei nas primeiras jogadas.
Bingo!!! Este sempre foi o ponto fraco dele, desafiá-lo dizendo que eu sou melhor.
No decorrer da partida, puxo assunto o tempo todo, mas ele, por sua vez, responde só o básico, concentrado e atento. Meus pais divertem-se ao perceber a minha estratégia para distraí-lo, uma vez que o jogo de xadrez requer muita concentração. Ele parece alheio aos meus comentários provocantes e a partida segue. A noite vai passando e eu comemoro, por dentro, pois tenho a certeza de que, nesta noite, ele não vai autodestruir-se por ter ficado aqui. Completamos cada um, 49 lances consecutivos, sem movimentação de qualquer peão e sem a captura de qualquer peça. Caso aconteça isto com 50 lances, o jogo é encerrado por empate. Ele faz o lance dele e olha para mim, feliz, acreditando que eu não vou conseguir fugir do xeque-mate. Minha determinação em não perder faz-me ficar atenta e, numa jogada inteligente, eis que eu consigo empatar o jogo.
− Eu cresci, bonitão... – sorrio para ele, feliz da vida – Acho que vou levá-lo de moto para um jantar, num restaurante bacana.
− Vai sonhando...
Nessa noite, ele não saiu, mas, ficou inquieto, andando de um lado para outro, talvez por estar sentindo a abstinência da bebida. Fiz de tudo para distraí-lo. Sentada com ele, na frente da casa, vendo as estrelas, dei o primeiro passo.
− Dado, você é feliz? − ele olha para mim, com cara de espanto. Aff... sou uma anta mesmo em ser direta, tão sutil quanto um elefante numa loja de cristal... – Quero dizer, feliz aqui, com a vida que você leva. Nunca pensou em sair para conquistar o seu espaço pelo mundo?
− Bonequinha, para tu, sair daqui significou conquistar um espaço no mundo, mas, para mim, ficar aqui é viver o mundo que me interessa.
Agora, espantada estou eu, porque, pela primeira vez, em dias ao seu lado, ele fala uma frase que contém mais do que dez palavras! Aproveito a deixa e estabeleço um bate-papo, como se fôssemos dois antigos conhecidos abordando assuntos reais e profundos.
− Você já se apaixonou?
− Acho que uma única vez.
− E como foi?
− Não foi.
− Por quê?
− Nunca tentei descobrir o motivo.
− Os porquês são difíceis de entender, né? – tento aproximar-me dele, fazendo uma confissão – Acho que estou apaixonada – levanto a cabeça, que está apoiada no encosto da cadeira de balanço, assustada com minha própria admissão. Estes dias aqui têm deixado meus pensamentos voltados para o meu garanhão. Sinto falta da sua voz, do seu cheiro, da sua risada, da sua autoridade... na verdade sinto falta dele inteiro! É como se estivesse faltando uma parte bonita de mim mesma.
Todo protetor e de poucas palavras, meu irmão inverte o jogo, passando a fazer as perguntas.
− E o cara é bacana?
− Ele é ótimo! Além disso, tem uma pegada... – rio da cara que ele faz.
− Poupe-me dos comentários sórdidos, guria! Quero apenas saber se ele é carinhoso contigo e se te faz feliz.
Conto para ele tudo o que o Carlos fez, até agora, para me conquistar. Claro que, como ele mesmo pediu, poupo-o dos comentários mais íntimos e sujos. Mas, não posso negar que, a cada vez que vou “pular” essas partes quentes, a lembrança, de qualquer jeito, vem à minha memória, fazendo com que eu sinta formigarem certas partes do meu corpo.
A noite foi longa e o bate-papo maravilhoso. Percebi que, por diversas vezes, tirei-o da zona de conforto. Mas, não forcei a barra, porque ainda é muito cedo para mexermos numa ferida exposta e aberta. Ainda assim, estou determinada, antes de ir embora, a convencê-lo de que uma terapia, será muito bom para ele tanto quanto para mim.
Entramos, pois o sereno da noite deixa-nos gelados. Diferente dos outros dias, ele não dorme rápido. Nem eu. Percebo-o mexendo-se, de um lado para o outro, na cama. Ele senta-se, levanta da cama, vai buscar água, volta e deita novamente, até que, enfim, acho que adormece, como eu. O martírio começa no meio do meu sono. Primeiro, minha preguiça e sonolência gritam não ser nada e pedem para eu voltar a dormir, mas, a minha consciência alerta-me que o Eduardo está perdido nos seus pesadelos.
Eu levanto rápido quando o vejo debater-se e gemer. É muito difícil vê-lo tão vulnerável, perdido dentro de um pesadelo. Sento-me ao seu lado, na cama, e passo a mão nos seus cabelos suados, quando me lembro da música que minha mãe cantava para nós dois adormecermos. E começo a cantar baixinho perto do seu ouvido.
Eu queria o tempo parar
De novo lhe fazer ninar
Crescer e mudar, não dá pra evitar
É o caminho que Deus lhe traçou
Brinquedos, gibis, violão
Espalhados por todo lugar
Um dia a poeira eu irei tirar
No silêncio de não te encontrar
Vou guardá-lo em meu coração
As lembranças jamais mudarão
Pois quando partir e saudades sentir
Estará sempre em meu coração
Os dentinhos você vai trocar
E roupas maiores usar
O seu caminhar vai para longe o levar
Pois não posso impedir seu querer
Os dedinhos que agarram minha mão
Coisas grandes eu sei que farão
Você não é meu, é um presente de Deus
E o futuro está em suas mãos
Vou guardá-lo em meu coração
As lembranças jamais mudarão
Pois quando partir e saudades sentir
Estará sempre em meu coração
Pois quando partir e saudades sentir
Estará sempre em meu coração.
Ele fica tranquilo conforme vou cantando. As lágrimas escorrem pela minha face e ele já não se contorce mais. Eu agradeço a Deus por ele ter seu sono mais uma noite. Cubro-o, com cuidado, e beijo sua testa.
− Meu grande e pequeno irmão, o mundo ainda te presenteará com a mais pura felicidade, basta você permitir e acreditar que não existe a escuridão eterna, porque os raios de sol contemplam a vida todos os dias.
Pela manhã, ao som do galo cantando, viro-me na cama e tampo os ouvidos com o travesseiro.
O galo canta mais uma vez.
− Dado, aperta a tecla “stop” desse galo esganiçado...
Acostumado com isso, ele nem se mexe. O galo canta mais uma vez. Irritada, pego o travesseiro e jogo na cama dele, com força.
− Vamos lá, Dado, torce o pescocinho desse Pavarotti cheio de penas!
− Ei!!! Vira para o outro lado e durma, ele já vai parar – ele resmunga.
Não consigo dormir mais. Viro de um lado para o outro, na cama, até que, vencida, decido levantar. Antes de sair do quarto, tenho a vontade de retribuir o carinho que o Dado dedica a mim a vida inteira, quando dormimos um ao lado do outro. Chego perto dele e desço meus lábios até sua testa, dando-lhe um beijo suave. Levo o maior susto quando um braço enorme puxa-me para a cama! O safado começa a me fazer cócegas, apoiando o corpo sentado na guarda da cama, tendo minha cabeça presa embaixo do seu braço esquerdo, enquanto com o outro me tortura.
− Para, Dado! – esperneio e defendo-me como posso – Pelo amor de Deus, homem! Você nunca ouviu falar que, na falta de desodorante, pode passar limão na axila para tirar o cheiro ruim? – o homem é cheiroso, mas, esta é a única arma que tenho e não hesito em usá-la − Meu querido, pelo cheiro forte, não sei se apenas um limão vai resolver, acho que deverá passar o limoeiro inteiro aí.
− Engraçadinha! – ele leva o braço ao nariz e eu aproveito a deixa para fugir.
Sinto que estamos estabelecendo uma empatia um com o outro. Parece que ele também sentiu falta de mim. Passamos praticamente o dia todo juntos, comigo provocando-o quanto a ele ser o meu carona esta noite e ele dizendo que jamais.
− Já deu um trato na moto, Dado? Não quero chegar à cidade com a moto toda suja. Afinal, não são todos os dias que as pessoas veem uma mulher pilotando uma Harley− claro que digo isso tudo brincando, pois o que me permitiria seria uma volta dentro do sítio, porque não sou a louca da Babby, que pilota no trânsito de São Paulo, quem dirá na estradinha de terra que leva à cidade...
− Sonhar não custa, bonequinha.
Sonhei nada! Na verdade, eu achei o dia inteiro muito divertido. Cada vez que o provocava, ele dizia, o turrão, que quem pilotaria a moto seria ele. Meus pais, caindo na minha pilha para o atormentar, repreenderam-no dizendo que aposta era aposta.
Sem mais torturas, na hora de ir, já deixo claro que será ele quem vai pilotar. Recebo o vento e o ar puro no rosto conforme a moto avança em direção à cidade. Ontem à noite, o Dado deixou-me curiosa para saber quem é a mulher que balançou o seu mundo. Será que ele tem o mesmo bloqueio que o meu com relação a se entregar a um amor? Este será um bom jantar e acho que vamos ficar um pouquinho mais próximos.
O ronco da moto, mais a combinação de dois irmãos vestidos de motociclistas, desperta a curiosidade das pessoas da cidade, o que fica perceptível pelos olhares voltados para nós, que estamos com os rostos cobertos por capacetes. Quando fomos sair de casa, eu estava vestida apenas com um jeans susto, uma bota preta e uma malha fina, enquanto ele estava lindo, na sua simplicidade, com um jeans justo, delineando a beleza que Deus deu a ele... olha, vou falar, esse homem não precisa esforçar-se para ser bonito e gostoso, porque estava lindo com uma simples camiseta branca, com uma jaqueta de couro antiga, de motociclista, mas, que nunca sai de moda, por cima. Quando olhou para mim, disse que eu não poderia sair com aquela blusa apenas. Eu voltei para casa e peguei uma jaqueta de couro preta, que levei para os dias mais frios.
Ele deve ser popular pela cidade, pois em todos os grupos de pessoas aglomeradas por quais passamos, há aquelas que acenam para ele, cumprimentando-o, que retribuiu acelerando e aumentando o som ronco da moto. Pelos olhares e viradas de pescoço das mulheres, tenho certeza de que se estivesse ao lado delas ouviria os suspiros. Passamos em frente da casa da D. Agnello e não entendo a acelerada mais ousada que ele dá... será que para mexer comigo por causa de ter vivido lá? Aperto a cintura dele e peço-lhe para parar a moto.
− Será que podemos parar cinco minutinhos para cumprimentar a D. Agnello?
Mesmo com apenas a viseira do capacete levantada, pude vê-lo ficar com suas bochechas coradas e contorcer a boca.
– Acho melhor não...
− Eita, por que não? Está acontecendo alguma coisa que não sei? – fico assustada, por alguns segundos. Será que o Dado aprontou algo para minha grande amiga... eu esgano-o tal como queria fazer com aquele galo Pavarotti! – Eduardo Alencar? − não pronuncio o seu último sobrenome, porque sei que isto o incomoda.
− Outro dia... – ele diz, abaixando a viseira e seguindo viagem.
Outro dia uma pinoia! Ele vai falar sobre isto ainda hoje ou não me chamo Patrícia.
Paramos em frente ao Hotel e Churrascaria Querência. Como um bom gaúcho, duvido que escolhesse outra opção. Aceito sua sugestão, pois, afinal, a aposta foi eu pagar um jantar. Pilotar a moto foi um direito adquirido por mim, mas, isso eu farei amanhã, de preferência com ele na garupa, para lhe mostrar que também posso proporcionar-lhe um pouco de emoção.
Ele é bronco e tímido ao mesmo tempo. Não sabe como se portar na entrada da churrascaria e eu pergunto-me quantas vezes ele pôde ir a um restaurante, nos seus 32 anos de vida. Vendo seu constrangimento quando a hostess indaga se vamos ficar no bar ou jantar, assumo e respondo dizendo que queremos lugar para duas pessoas no rodízio.
Ao passar pelo bar, vislumbro a marca estampada na máquina de chopp, o que me leva a um estado de nostalgia e saudades imensas do meu garanhão. Ai, como eu queria que ele estivesse aqui comigo! Sinto falta do seu afago de ternura, do seu olhar compreensivo, da sua boca que faz arder meus lábios de tanta falta que sente dos seus... A saudade age silenciosa, dentro de mim. Pego o celular e ele dispara uma imensidão de mensagens, como se festejando a captação de sinal 3G. Bem-vinda à civilização, Patrícia! Claro que a maioria das mensagens é do Carlos, embora tenha, também, da Babby, do Dom Leon e das meninas do escritório.
− O que vão beber? – o garçom pergunta-nos e, mesmo envolvida e ansiosa para ler todas as mensagens e ligar para meu garanhão para, pelo menos, ouvir a sua voz, ouço o Eduardo pedir uma cerveja.
− A chave − estendo a mão, instintivamente.
− Vejo que não perdeste a mania de ficar com um olho no peixe e outro no gato.
O garçom fica olhando para mim e para ele.
− Se vai beber, eu volto dirigindo. Você já ouviu falar da lei seca, não, Dado? – calo-me, pois não precisamos discutir assuntos familiares na frente de ninguém. Ele não me dá a chave e eu sou firme, não cedo – O senhor pode deixar-nos resolver? Daqui a pouco o chamamos. Obrigada.
− Bonequinha, eu preciso muito mais do que uma cerveja para mexer com meus sentidos.
− Não duvido disto, mas, vamos deixar uma coisa bem clara aqui, Eduardo.Vivi anos vendo você destruir-se e não acredito que uma cerveja lhe fará mal, mas, sei que uma cerveja leva a outra. Não sou como nossos pais, que são coniventes com tudo o que você faz de ruim a si próprio. Acho e quero muito que você entenda que merece dar-se uma chance de sair desse passado horrível que vivemos.
− Bah!!! O que tu sabes sobre mim? – ele encara-me e fala, com a voz rouca de emoção.
- Não sei muito do atual Eduardo, mas, conheci bem o Eduardo criança. Olha, não marcamos este jantar para discutir – continuo, com a voz baixa e calma – Quero apenas que saiba que estou aqui, agora. Não tenho como recuperar o tempo que perdemos separados, mas, vou deixar bem claro que pode contar comigo para tudo, nem que, para isso, tenhamos que falar das coisas ruins a que nos submeteram...
Ele empalidece e, rapidamente, foca o assunto na questão anterior.
− Bah! Então tu estás aqui para me impedir de beber uma cerveja? Se for isto, obrigada pelo conselho, mas, sei muito bem o que posso e não posso fazer comigo.
Prefiro não continuar a discussão. Nós mal chegamos e não vai ser uma imposição minha que vai evitar que eu chegue aonde quero com ele hoje. Suavizo meu semblante e volto à minha usual expressão sapeca.
− É tanto medo assim de eu pilotar a sua moto?Olha que posso surpreender você, bonitão!
− Capaz! Confio mais em mim embriagado do que em tu domando aquela máquina! Lembro-me muito bem do zig-zag que tu fazias quando tentavas pilotá-la. Lembra-se de quando tu levaste o varal de roupas para dentro do barracão? Foi igual a um filme... quando parou, tu tremias igual vara verde.
Solto uma baita gargalhada com a lembrança, sem ligar para onde estou. Não consigo parar de rir, porque aquela cena foi mais engraçada do que poderiam fazer num filme.
− Ok!!! Confesso que a estradinha que nos leva de volta não será uma boa opção para eu pilotar aquela belezura, mas, só por hoje, por favor, tenta não beber... por mim, Dado! Temos tantas coisas para conversar! Vamos pedir um suco ou até um coquetel sem nada alcoólico? Por favorzinho... faço o biquinho que lhe mostrava sempre que queria uma coisa dele, quando éramos crianças, e que sempre funcionava − Diz que sim, diz...
Ele abaixa o olhar, derrotado, e replica:
– Só por hoje! – caio em mim quando me lembro de ter lido a respeito de como é difícil tomar essa atitude e não ceder ao vício, nas várias vezes em que pesquisei a respeito de dependência química. Então, essa foi uma imensa vitória, que só vou comemorar internamente para não o magoar.
Chamo o garçom, fazemos nossos pedidos e o rodízio de carnes começa. Delicio-me com o sabor diferente das carnes das churrascarias de São Paulo. Sério, a carne aqui parece diferente para melhor! Ele brinca comigo por causa das minhas caras e bocas que, claro, exagero ao máximo para o fazer rir. Com todo papo animado, pergunto-lhe o motivo da demonstração de exibicionismo dele na frente da casa da D. Agnello.
− Bah! Virei exibido agora só por acelerar a moto?
− Já somos bem grandinhos e, pelo seu acelerar, sei que tem mais coisa por trás daquela demonstração, como se você estivesse anunciando que estava na cidade. E não entendo porque não quis parar na casa da minha amiga querida apenas por cinco minutos!
− Tu não desistes, né, guria? Enquanto eu não falar, tu não vais parar de insistir, parecendo um gravador descontrolado.
− Então, tem alguma coisa mesmo... sabia!
− Onde foi que não entendeste que falaremos sobre isso outro dia?
− Por que não hoje? Afinal, temos uma noite inteira pela frente – coloco minhas mãos sobre as suas, que estão agitadas sobre a mesa, e, num gesto de carinho, ele leva-as aos seus lábios, em sinal de agradecimento por ver que estou tão empolgada em querer conhecê-lo mais, beijando-as.
− Não quis parar na casa da D. Agnello porque a sobrinha dela, a Flávia, está morando lá e, vamos combinar, aquela mulher é muito insuportável e nariz empinado, tchê!
− E meu nome é mamãe Noel, por acaso? Dado, a mulher a que você referiu-se, ontem à noite, é ela?
− Bah... Se falar que não, tu vais querer descobrir o tal nome, então, já lhe digo sim, mas, também, não quero falar mais sobre isto. Não nascemos um para outro. Ela não é para o meu bico, o que já me deixou muito claro.
− Azar dela, pois eu sei que aí dentro de você existe um homem maravilhoso, esperando alguém destravar as portas do calabouço que aprisiona seu coração e libertá-lo – ele pisca para mim e abaixa os olhos. Sei que ele não acredita nisso, mas, a forma carinhosa que ele sempre adotou para cuidar de mim prova o quanto de amor ele é capaz de sentir e oferecer a alguém, tenho certeza disso. Ele teve, sim, uma fase muito difícil de rebeldia, sendo que, em algumas vezes, senti muito ódio, mas, nunca a mágoa foi maior do que o amor que sinto por ele.
De repente, sinto um arrepio... como se estivéssemos sendo observados. Olho para os lados e nada vejo. Volto-me para o Eduardo, trago uma de suas mãos até o meu rosto e repito o gesto de carinho. Ouço um rosnado, junto à mesa, e levanto a cabeça para ver o que está acontecendo. Então, meus olhos encontram os da figura parada, na beira da mesa, com uma expressão de poucos amigos. Meu coração dispara, minhas mãos ficam frias, minha boca seca e meus joelhos tremem.
[1]Land of the Lost (1974–1976, Elo Perdido no Brasil) foi um de uma série de programas de televisão visando um público infantil, criado e dirigido por Sid e Marty Krofft. Durante sua exibição original, foi transmitido pela rede de TV NBC. Tornou-se uma espécie de cult e está disponível em DVD. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Land_of_the_Lost_(s%C3%A9rie).
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